THE DELAGOA BAY WORLD

18/12/2023

A PRIMEIRA CASA SALM EM LOURENÇO MARQUES

Imagens retocadas.

Quando, nos anos 60, todos os dias ia a pé para a escola primária Rebelo da Silva (actual 3 de Fevereiro) e desde a Rua dos Aviadores (actual Rua da Argélia) via a Avenida Fernandes Tomás (acho que agora é a Mártires da Machava) para a escola, que ficava na Pinheiro Chagas (actual Dr. Eduardo Mondlane), passava sempre por três casas que achava particularmente interessantes: a Villa Margherita (que foi usada para um pequeno museu de geologia), a Vila Algarve (a infame sede da Pide, que eu desconhecia por completo e que hoje está uma sucata) e a Residência Salm (que eu chamo assim, dado que acho que li no Grande Rogério diz que foi mandada fazer por este empresário de Lourenço Marques -mas não tenho a certeza). Hoje fica na esquina da Avenida Mártires da Machava e Rua José Mateus. Do outro lado dessa esquina fica uma espécie de mercado denso de palhotas, cheio de gente, onde se vende tudo e mais alguma coisa e que durante décadas estava vazio e servia apenas como corta-mato se eu quisesse ir à Pastelaria Cristal.

A Vila Algarve, anterormente mandada construir pelo empresário de origem algarvia José dos Santos Rufino (o tal dos álbuns e da lotaria) foi vendida ao Estado para servir de sede da Pide em Lourenço Marques, que, depois de uma presença residual, se instalou em Moçambique de armas e bagagens no início da década de 1960. Por cima casa da original de Rufino, que tinha apenas rés-do-chão, fizeram mais um andar e, supostamente, câmaras de tortura e celas, etc – o folclore em redor da casa (de que, que eu saiba, nunca se fez um estudo detalhado) é rico. Mas mantiveram a traça pictoresca. típica burguesa à antiga portuguesa com lindos painéis de azulejos, o que, a posteriori, para além de se situar numa pacata zona residencial a todos os títulos insuspeita, dá a tudo um ar surreal. É normal turistas irem lá fotografar aquilo, apesar de ser uma ruína com tapumes.

A linda Residência Salm, na Polana, numa foto de um dos álbuns de Santos Rufino, cerca de 1927. Com um terreno espaço e um desenho elegante.

A Residência Salm (há uma outra Casa Salm, mais recente, uma daquelas do Pancho Guedes) lá se foi aguentando mais ou menos intacta durante mais do que cem anos. Imagino que mudou de mãos para alguém bem conectado da Nomenklatura após a Vassourada que começou em 1974 e deve ter ido sendo alugada a estrangeiros, em dólares.

Até agora.

A Residência Salm, numa foto recente.

A verdade. no entanto, é que a pressão imobiliária na actual Maputo é muito forte (a inexplicável procura e oferta indicia origens muito suspeitas dos dinheiros que a alimentam em ambos os lados) e a Cidade, tal como antigamente, não quer, ou não tem meios, de manter nem sequer o seu mais expressivo património.

Pelo contrário.

A Residência fica numa zona agora considerada “nobre” e situa-se num lote com 2000 metros quadrados. Há uns dias, a empresa A Predial colocou num jornal de Maputo um anúncio de um leilão em que se convidam investidores para licitarem a propriedade, o que deverá ter acontecido em 6 de Dezembro.

Anúncio da Predial, Limitada, publicado no Diário Económico de Maputo, 16 de Novembro de 2023. Refere que o terreno tem 2 mil metros quadrados e que já tem projecto aprovado para se construir ali um prédio com 21.450 metros quadrados para uso residencial. Se se estimar uma área de implantalão de mil metros quadrados e apartamentos de 200 metros quadrados, estamos a falar de um prédio com pelo menos 20 andares e 107 apartamentos. Com uma média conservadora de 4 pessoas por apartamento, estimo que ali viverão 429 pessoas – cem vezes mais que anteriormente. A 400 mil dólares por apartamento, estamos a falar de cerca de 43 milhões de dólares.

Eu já nem me refiro à pressão sobre a já de si periclitante infra-estrutura (ainda largamente colonial) da Cidade de Maputo para este tipo de construção. Não conheço grande evolução nos sistemas de saneamento da cidade (esgotos e estações de tratamento de águas residuais) que, ao que sei, continuam a atirar essas águas residuais sem qualquer tratamento para a Baía, que já deve ser mais veneno pestilento que água do mar. Nem o reforço da rede eléctrica da Cidade, que já teve remendos mas que deve precisar de uma reposição geral. Mas passar, num único terreno, de uma casa de uma família para um mastodonte desproporcional com 20 andares, onde viverão mais do que 400 pessoas, especialmente tendo em conta que este é apenas um de inúmeros projectos, é obra.

E depois há esta imparável destruição de património arquitectónico. Maputo está a deixar de ser uma cidade com uma beleza, proporção e um percurso histórico, para ser um sítio, e descaracterizado. Quase tão mau como aquilo que foi feito nas décadas de 60 e 70. quando os portugueses “invadiram” aquilo.

Fica esta referência e esta memória.

14/10/2023

STANLEY RYGOR, UM JUDEU EM LOURENÇO MARQUES

Até eu ter ido viver para os Estados Unidos após sair de Moçambique em 1975 (e não poder voltar) e rapidamente me ter convencido que Portugal, para onde tinha ido estudar, com a sua miséria perene e agora as fantasias do socialismo, nunca ofereceria as condições para reunir a família (tinha razão. 50 anos depois do 1974, Portugal permanece na cauda da Europa em termos de nível de vida), o único judeu que conheci era o Senhor Stanley Rygor, sobre quem só sabia que tinha uma lojinha na velha Baixa de Lourenço Marques.

Ele ia às piscinas ver as provas de natação e quem o conhecia era a minha irmã Cló, na altura reconhecida como campeã nacional de natação (era comum, quando me apresentava a alguém, dizer que ou era irmão da Cló ou filho do Sr. Comandante Botelho de Melo).

Foi a Cló que o conheceu primeiro, quando um dia foi à loja do Sr. Rygor na Rua Consiglieri Pedroso para emoldurar um poster do lendário nadador norte-americano (e judeu) Mark Spitz, que faria história nos jogos olímpicos de Munique no verão 1972 – interrompidos por (mais) um inenarrável ataque terrorista de palestinianos na vila olímpica e o subsequente massacre de vários atletas e dirigentes da delegação israelita.

Cló no seu quarto, 1973. Aquilo atrás é uma bandeira de Israel (?)

Algum tempo mais tarde ela apresentou-me o Sr. Rygor, sem eu saber nada sobre a sua religião. Só muito mais tarde é que soube, mais como curiosidade. Eu na altura nada sabia sobre o judaísmo, o Holocausto perpetrado pelos Nazis durante a II Guerra Mundial, os séculos e séculos de perseguição, principalmente na Europa. Apenas tinha a noção, transmitida muito en passant nas aulas de catequese na Rebelo da Silva e na Igreja de Santo António da Polana (pois….) que Jesus Cristo fora judeu e depois aquela confusão toda com os romanos há dois mil anos. Os padres vagamente rosnavam que não eram de confiança e as mensagens subliminares dos filmes de Hollywood (como o Barrabás, que vi no Varietá) escapavam-me.

Ele, era simpático, alto, culto, com um bigodinho fino e tinha um sotaque esquisito, dando um ar de estrangeiro.

Stanley Rygor.

Lourenço Marques, e penso que uma boa parte de Moçambique, era – parecia então -um rico mosaico de diversidade cultural, étnica e religiosa e, apesar de eu não ser religioso, eu tinha noção de ali conviverem pessoas das mais diversas origens e persuasões. De cabeça, lembro-me de, para além dos católicos, de existirem várias denominações cristãs protestantes, muçulmanos (agora sei que sunnis), os ismaelitas, os hindús, ortodoxos gregos e as Testemunhas de Jeová.

E depois havia o Stanley Rygor.

Por um dos álbuns do Santos Rufino, que tinha comprado em 1972 por 10 escudos na loja do Monhé Branco junto à Praça Mac-Mahon, descobri por uma fotografia que em 1927 havia uma pequena sinagoga em Lourenço Marques mas só em 1998, quando, circunstancialente “regressei a casa” e fui trabalhar por uns anos em Maputo, é que descobri que o edifício ainda existia (mais ou menos abandonado então) que ficava recatado num terreno entre a Pastelaria Cristal e o antigo Liceu Salazar, na antiga Rua General Botha.

Entretanto em Setembro de 1974 veio a Frelimo com a sua limpeza étnica encapotada e credo revolucionário comunista, ainda por cima raivosa por aquilo do 7 de Setembro e quase todos os habitantes de Lourenço Marques simplesmente fizeram as malas e saíram de Moçambique, prenunciando os 50 anos que entretanto passaram e que basicamente têm sido uma longa, infindável, e quase impenitente desgraça. Anos mais tarde, alguém disse a alguém que disse a alguém (na altura não havia internet nem redes sociais, as pessoas simplesmente desapareciam da Cidade e levava anos a perceber o que lhes tinha acontecido) que me disse que o Stanley Rygor fechara a loja e tinha ido com uma irmã para a antiga Rodésia. Imagino que já tenha falecido mas não sei nada sobre o que lhe aconteceu.

Mas hoje temos a internet, com todos os seus defeitos e oportunidades.

E o que fui descobrindo é interessante.

Stanley era filho de Louis e Marie Rygor e tinha um irmão – Harry – e duas irmãs – Esther (ou Gertie) e Rosie. Todos os irmãos nasceram em Lourenço Marques.

Os pais, Louis e Marie Rygor, vieram da cidade de Odessa, ao Sul do que hoje é a Ucrânia, que conheço melhor desde que Putin anda entretido a desmantelar e a matar gente ali, mas que no tempo em que lá viveram ainda fazia parte do império russo, e onde havia uma expressiva comunidade judaica. Um texto refere que eles haviam “fugido” de Odessa no ano de 1905.

Curiosamente, na altura o cônsul do Império da Rússia em Lourenço Marques (e da Áustria-Hungria, e da China imperial) era um alemão genial, Fritz Wirth – o Wirth da Breyner & Wirth, que tinha vários negócios, alguns com Francisco de Mello Breyner.

Por alguma razão, em 1913, um ano antes do início da I Guerra Mundial, o casal Rygor, que entretanto passara alguns anos no Reino Unido, acabou por se radicar na pindérica Lourenço Marques, onde havia de facto uma pequena mas muito influente comunidade empresarial judaica. E abriram na Rua Consiglieri Pedroso uma lojinha de emoldurar quadros e vender vidros, etc. Louis dizia nos seus anúncios que era o único em toda a província. Esta era uma das três principais ruas de comércio da pequena cidade, sendo as outras a fundacional Rua Araújo e a então relativamente recente Avenida da República (hoje 25 de Setembro). Claro que havia ainda a Rua da Gávea, o bairro “indiano”, diz-se que povoado com gente de Diu, muçulmanos, com a sua Mesquita na esquina, onde iam rezar cinco vezes ao dia.

Anúncio da loja de Louis Rygor, no Anuário de Moçambique, a edição de 1917 mas que por causa da Guerra só saíu em meados de 1918 (se calhar não arranjavam papel). A fachada da loja manteve o mesmo aspecto até 1975.
Trecho da Rua Consiglieri Pedroso em 1968. A loja Rygor ficava do lado esquerdo nesta imagem de Fernando Sousa. A mesquita ficava uns metros à frente, à direita, na então (1913) Rua Francisco Ferrer, nome de um radical obviamente dos afectos dos radicais da I República e que os radicais do Estado Novo viriam a chamar…Rua Salazar.

O casal Rygor viveria em Lourenço Marques o resto da sua vida. Marie Rygor faleceria em 22 de Julho de 1935 com 64 anos de idade e Louis em 17 de Dezembro de 1948 com 74 anos de idade.

Ambos foram sepultados no talhão judaico junto do Cemitério de São Francisco Xavier, a caminho do Alto-Maé, onde ainda hoje se podem ver as suas lápides.

Dando sequência a uma aspiração da pequena comunidade judaica da cidade, em 23 de Agosto de 1926 foi inaugurada a sua (até hoje) única sinagoga. Na comissão constituída para o efeito, que incluia Ernest Salm (da Jacques Salm & co.) como presidente, Jules H. Muller, J. Barnett, C. Mosiff, Glazer e Joseph Levy, Louis Rygor era o Tesoureiro (nota: a lista apresentada aqui difere).

A sede da Jacques Salm na esquina da Praça Mac-Mahon (actual Praça dos Trabalhadores) e a Rua Consiglieri Pedroso, em Lourenço Marques, anos 60. No final dessa década, o edifício seria demolido e ali seria construído um prédio, também da Salm.

Segundo vários relatos, entre os quais este, a comunidade judaica de Lourenço Marques organizou-se mais ou menos por acaso, quando, no início da II Guerra Anglo Boer (11 de Outubro de 1899), o Presidente do Transvaal, Paul Kruger, subitamente expulsou do seu território o Rabbi Joseph Herman Hertz, que acusava de ser pró-britânico e que saiu do Transvaal pela linha ferroviária entre Pretória e Lourenço Marques, onde ele passou uns dias antes de apanhar um barco para Durban, sob controlo britânico. Nessa curta estadia, Hertz, que era obviamente firme, voluntarioso e uma força da natureza, pediu a Leon Cohen, um empresário e figura de topo na pequena urbe, que organizasse uma reunião na segunda-feira, dia 18 de Dezembro de 1899, com os fiéis locais, onde estabeleceu três prioridades: 1) criar-se um cemitério judaico na Cidade; 2) formalizar uma comunidade organizada; e 3) criar um sub-comité para coordenar actividades com o Comité de Vigilância Judaica de Johannesburgo e a Sociedade Judaica para a Protecção de Mulheres e Raparigas de Londres.

Cerca de vinte anos mais tarde, em 1921, os judeus locais formaram uma organização chamada Associação de Benevolência Israelita Honen Dalim (que quer dizer “ajudar os pobres”), que organizou o esforço para comprar um terreno (na Rua General Botha, adquirido à Delagoa Bay Lands Syndicate, uma das Delagoa Bays que eram quase donas daquilo tudo) e ali construir uma sinagoga, que seria consagrada pelo Rabbi Chefe Prof. Doutor J. L. Landau, que veio expressamente de Johannesburgo. Formalmente, a sinagoga de (hoje) Maputo chama-se Sinagoga Honen Dalim.

A Sinagoga Honen Dalim, foto recente.

Segundo um artigo interessantíssimo de Hyman Jocum, que reproduzo na íntegra mais abaixo, em que ele entrevistou ambos Stanley Rygor e a sua irmã Gertie no início de 1976, quando ainda estavam em Moçambique, já independente, a altura em que estiveram mais judeus em Lourenço Marques foi em 1942, no pico da II Guerra Mundial, Hitler em pleno e a matar judeus a uma escala industrial, sendo a maioria refugiados em “trânsito” (ou seja tecnicamente nem podiam ficar porque Salazar não deixava, nem podiam ir para lado nenhum porque praticamente ninguém os aceitava). Após o fim da guerra, segundo a entrevista, a maior parte destes rumou o Brasil e a Alemanha Ocidental. Imagino que alguns acabaram também em Israel e…ficaram em Moçambique.

Penso que após a morte do pai em 1948, Stanley passou a tomar conta da loja de vidros e molduras na Rua Consiglieri Pedroso.

Numa crónica, o já falecido João de Sousa recorda quando Stanley foi seccionista do Clube Ferroviário de Lourenço Marques, pelo hóquei em patins, numa altura em que o hóquei em patins da Cidade se revelou ser o melhor do…mundo, a partir dessa altura. No seu magnífico blog, o inigualável e também já falecido Francisco Velasco, uma peça-chave do milagre do mundial “moçambicano” no hóquei em patins, fez uma “lista de pessoas VIP” que ajudaram no processo de criar uma equipa campeã do Mundo. Stanley Rygor é mencionado, como seccionista. (ele também menciona o meu Pai, o que é simpático mas não percebo).

Com a chegada da Frelimo a Lourenço Marques no final de 1974, pelos vistos quase todos os judeus de Lourenço Marques se juntaram à Debandada Geral, pois percebia-se claramente que iriam destruir a economia e passar Moçambique duma ditadura colonial de partido único para uma ditadura comunista belicista e de partido único. Na peça em baixo, escrita no início de 1976, já só se fazia referência a Stanley (que agia como chefe oficioso da comunidade judaica local) e à sua irmã Gertie e a mais um ou dois residindo na agora nova capital do nascente país.

Entrevista de Hyman Jocum a Stanley Rygor e Gertie Rygor, 1976

Neste artigo que é essencialmente uma entrevista, para além da descrição de Lourenço Marques em 1942, e de outras informações, é deveras interessante a referência à proveniência e o percurso dum Sidur (um livro de rezas) durante a II Guerra Mundial, que fora parar a Lourenço Marques. O documento, que era duma menina com 10 anos de idade, foi contrabandeado pelo pai da menina, de Varsóvia, na Polónia, onde viviam, para a cidade russa de Vladivostock, no Extremo Oriente, via o comboio transiberiano, de onde seguiu para Shangai, onde se lhe juntou a mulher, que foi de seguida com ele para Macau. A menina ficou atrás. Em Macau, apanharam um barco que rumou a Lourenço Marques – em “trânsito”. Entretanto, poucos dias antes de a Alemanha nazi invadir a União Soviética, em 22 de Junho de 1941(um domingo), a Cruz Vermelha Internacional conseguiu resgatar de Varsóvia a filha do casal, que conseguiu fazer chegar a Lourenço Marques. As autoridades da África do Sul permitiram que ela frequentasse uma escola local até ao fim da guerra. Os pais ficaram em Lourenço Marques. Aparentemente, depois foram por uns anos para Shangai e, em 1949, quando os exércitos comunistas de Mao tomaram aquela metrópole chinesa, mudaram-se para a então nova nação de Israel, que havia declarado a sua independência em 14 de Maio de 1948.

Capa da revista Tribuna Israelita, Julho-Agosto de 1976.
Artigo, 1 de 4. Penso que os “motins” em Lourenço Marques a que Hyman faz referência no início do seu texto foram uma rebelião de elementos da Frelimo na Cidade no fim de 1975/início de 1976. Soube destes distúrbios pela minha Mãe, que ainda se encontrava na Cidade e que passou dias de terror, mas nunca encontrei nada escrito sobre esse episódio. A Frelimo abafou tudo, até hoje.
Artigo, 2 de 4.
Artigo, 3 de 4.
Artigo, 4 de 4.

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