THE DELAGOA BAY WORLD

09/09/2020

A MIGRAÇÃO DE LOUIS TREGARDT, 1835-1838

Imagem retocada. Texto adaptado do texto publicado aqui, vastamente editado.

O mapa do êxodo do grupo de Louis Tregardt da Colónia do Cabo para o Norte é indicado em roxo e acaba na actual Cidade de Maputo, assinalada no mapa como Delagoa Bay.

Introdução

A migração de alguns grupos de farmeiros boer a partir da Colónia britânica do Cabo entre 1830-1854, acabando por forjar a identidade afrikaner e fundar três repúblicas boer entre aquela colónia e o que é hoje o Sul de Moçambique, foi um dos eventos seminais que dominariam a história da região nos quase 150 anos que se seguiram, com a particularidade de não ter sido uma colonização patrocinada por uma potência europeia. De facto precedeu-a em cerca de 50 anos. Pelo contrário, a migração dos boers do Cabo para Norte, foi uma reacção anti-colonial em relação à Grã-Bretanha e eventualmente levou a várias guerras entre boers e ingleses e, já no Século XX, a um recrudescimento e exaltação da identidade, da religião e do nacionalismo boer, mesmo dentro de um contexto colonial britânico, que eventualmente desembocou na eleição de uma coligação pró-boer em 1948 (que praticamente coincidiu com a inauguração, no ano seguinte, do Monumento Voortekker, nos arredores de Pretória, que exaltava ) na emanação da legislação conhecida como apartheid durante a governação do Dr. Verwoerd (assassinado por um activista nascido em Lourenço Marques em 1966) e na constituição da República da África do Sul em 1961 sob o controlo da minoria boer.

O Monumento em memória dos Voortrekkers, nos arredores de Pretória. Inaugurado em 1949, celebra a identidade boer e a sua história. Vale a pena visitar pois ajuda a entender um pouco melhor a história da África do Sul.

Até 1994, a maioria negra sul-africana era discriminada e estava legalmente impedida de participar na governação do país. Os boers só negociaram a mudança para a maioria negra após a queda do comunismo sovético, a partir de 1989 e após um longo período de resistência.

Hoje é demasiadamente fácil, e até considerado politicamente correcto, descontar o fenómeno boer e inscrevê-lo na categoria geral da dominação colonial europeia no continente africano. Na África do Sul, decorre uma verdadeira batalha para rever e apagar partes dessa história, nalguns casos justificadamente, noutros não. Este é um problema que só pode ser resolvido pelos sul-africanos.

Em baixo, refiro a viagem, relativamente mal sucedida, de uma dessas migrações, a do grupo de Louis Tregardt, por quatro razões.

A primeira, é que a expedição Tregardt acabou em Lourenço Marques em 1838, com a morte de Tregardt, da sua mulher e dos últimos sobreviventes.

A segunda é que, por um conjunto de razões, pela mão do historiador Alfredo Pereira de Lima, em 1968 foi inaugurado em Lourenço Marques um monumento evocativo de Tregardt e da sua expedição, junto ao local onde se situava o primeiro cemitério da então pequena localidade, onde foram sepultados os restos mortais do “pioneiro” boer. Esse monumento permanece intacto na Baixa de Maputo, e pode ser visitado.

A terceira razão é que, improvavelmente, Tregardt terá sido o único líder de uma migração boer que manteve um diário no qual que registou o dia-a-dia dessa migração. Retrata um mundo que, quase duzentos anos mais tarde, é quase incompreesnsível para as gerações actuais.

Finalmente, destaca o impacto significativo que os eventos da África do Sul, que permanece o “vizinho gigante” de Moçambique, tiveram na evolução do que se tornou numa colónia portuguesa e depois na República de Moçambique em 1975 e ainda nos anos seguintes.

A Migração Tregardt

Pensava eu, e alguns registos referem, que Louis Johannes Tregardt (10 de agosto de 1783 – 25 de outubro de 1838), também escrito Trichardt, era um agricultor de ascendência holandesa-huguenote (que foram os primeiros colonos brancos no Cabo, a partir da década de 1650) oriundo da fronteira oriental da Colónia do Cabo, e que mais tarde se tornou um dos primeiros líderes da série de migrações Boer (chamados, no original afrikaans, “voortrekkers” ou “trekkers”), ocorrida a partir de meados da década de 1830, em resultado da rejeição, por estes, da Pax Britânica.

Mas o Exmo. Leitor o Senhor Niklas Lehmann (ver em baixo no comentário de 6 de Setembro de 2022) refere que Tregardt não era de ascendência holandesa e huguenote: ” a afirmação que o “Louis Johannes Tregardt, também escrito Trichardt, foi (…) de ascendência holandesa-huguenote” é completamente errada. O apelido original era Trädgårdh e o avô era um emigrante da Suécia”.

Procurando evitar a que consideravam a odiada autoridade na Colónia britânica do Cabo, tomada pelo Reino Unido no decurso das guerras napoleónicas, Tregardt emigrou do Cabo em 1834 para ir viver entre os Xhosa, antes de cruzar o rio Orange, entrando assim, em território considerado “neutro”, isto é, fora da alçada da Colónia do Cabo e do império britânico.

A sua jornada para o norte, junto com um companheiro boer chamado Johannes van Rensburg, começou no início de 1836. Trechardt liderou um pequeno grupo de emigrantes, composto por oito fazendeiros bôeres, as suas esposas, um total de 34 filhos, alguns escravos bosquímanos (africanos originários da zona do Cabo), vários servos bantus (que à primeira oportunidade pisgaram-se), e o seu gado, dirigindo-se em nove carroças puxadas por bois para o interior numa direcção para Nordeste do Cabo, para uma região até então inexplorada (pelos europeus) e que hoje compõe mais ou menos a parte da África do Sul junto à fronteira a Nordeste, encostada a Moçambique e ao Zimbabué.

Durante um ano, o grupo ficou mais ou menos acampado numa base nessa zona a que chamaram Zoutpansberg.
Neste ponto mais ao norte do que acabaria por a ser a sua longa jornada, as condições insalubres e um clima de guerra tribal, começaram a afectar homens e animais. Aparentemente abandonado por uma caminhada posterior, e distante de locais onde podia obter suprimentos e encontrar compradores para o seu marfim (que era de onde vinha o dinheiro) Tregardt abandonou o acampamento e conduziu o seu grupo para sudeste, até eventualmente chegar ao pequeno Presídio de Lourenço Marques, na altura uma espécie de posto avançado português, constituído uns cinquenta anos antes numa língua de terra na parte Norte da Baía do Espírito Santo, a que os britânicos chamavam Delagoa Bay.

A passagem de Tregardt por estas regiões coincidiu com uma altura de enorme efervescência social e violência política africana, com guerras terríveis, secas persistentes e migrações tribais.

A rota seguida para chegarem até ao oceano provou ser muito mais árdua de percorrer e incluiu o desafio de atravessar uma seçcão ao Norte da cadeia montanhosa dos Drakensberg. Apesar de eventualmente ter chegado ao Presídio de Lourenço Marques, vários de seus companheiros contraíram malária e morreram pelo caminho. A esposa de Tregardt morreu junto do Presídio de Lourenço Marques em Maio de 1838, seguida pelo próprio Tregardt seis meses mais tarde.

Tregardt coordenou os seus movimentos com os do seu amigo e também Voortrekker, Hendrik Potgieter, que era suposto seguir o seu percurso. Tregardt começou a jornada para o norte e foi acompanhado pelo grupo de Johannes (Hans) van Rensburg. Tregardt e Van Rensburg foram os primeiros Voortrekkers a passar perto de Thaba Nchu, onde a tribo Barolong do chefe Moroka II residia.

Ao chegar a Strydpoortberg, na actual província sul-africana de Limpopo, Tregardt e Van Rensburg separaram-se, depois de Tregardt ter argumentado que Van Rensburg estava a desperdiçar as suas munições na caça aos elefantes para obter marfim (presumivelmente, em vez de para proteger o seu grupo). Van Rensburg e o seu grupo de quarenta e nove pessoas seriam chacinados em Junho de 1836, por uma milícia de Soshangane (ou Manicuse, o lendário líder do império de Gaza, então no seu zénite), junto de um braço do rio Limpopo, após um ataque nocturno.

Tregardt permaneceu no promontório ocidental de Zoutpansberg entre Maio e Agosto de 1836, onde foi visitado pelo grupo de Potgieter, que lhe garantiu que logo o alcançariam e se juntariam ao seu grupo. Potgieter partiu então para o Norte à procura de Van Rensburg, que não encontrou. Em Julho, Tregardt iniciou a busca na direção leste e alcançou o curral de Sakana no Limpopo, perto de onde o grupo de Van Rensburg foi provavelmente dizimado. Aqui, considerando estar em perigo e prestes a cair numa cilada das populações locais, Tregardt decidiu voltar para trás, quase certo do destino trágico de Van Rensburg.

Em Novembro de 1836, Tregardt mudou o seu acampamento para Leste, onde encontrara um clima mais agradável, nas proximidades da, mais tarde, cidade de Schoemansdal e Louis Trichardt, outrora conhecida pelas tribos locais como Dzanani. O seu grupo permaneceria ali até Junho de 1837. Ali construíram casas rudimentares, uma oficina e uma escola para vinte e uma crianças.

Foi aqui que Tregardt teria intervindo na luta pela sucessão entre os filhos dum falecido chefe local, Mpofu. Tregardt teria ajudado seu filho Rasethau (ou seja, Ramabulana) a chegar à chefia da sua tribo, derrotando o seu irmão mais novo, Ramavhoya. Por razões desconhecidas, as páginas do relato de Tregardt sobre este incidente específico foram, no entanto, arrancadas do diário que mantinha. Em resultado deste apoio, e para proteger Tregardt contra grupos de assalto dos Matabele, Rasethau deu a Tregardt liberdade para ocupar algumas terras e garantiu-lhe o acesso a áreas de caça. Na altura, o grupo de Potgieter, atrasado por conflitos mais ao sul, estava distante.

Entre Junho e Agosto de 1837, o grupo de Tregardt acampou a leste do rio Doorn (actual fazenda do rio Doorn), e em seguida partiu de Zoutpansberg para tentar encontrar uma nova base e uma rota comercial para chegar ao mar. As suas comunicações esporádicas com os portugueses em Lourenço Marques indicavam que seria bem-vindo e ainda que a costa leste era escassamente povoada.

Tregardt decidiu rumar ao sul da Baía do Espírito Santo, evitando a região do Limpopo, onde o grupo de Van Rensburg fora assassinado e onde as moscas tsé-tsé eram endémicas nas zonas mais baixas. Tregardt chegou ao rio Olifants via Chuniespoort em 2 de outubro de 1837 e consultou o chefe Sekwati do povo Pedi quanto a que caminho deveria seguir. O chefe Sekwati visitou o grupo de forma cordial e amigável e avisou que a rota para o leste estava obstruída por montanhas intransitáveis, e sugeriu que eles deixassem as suas carroças para trás e prosseguissem a pé. Tregardt, agora com 54 anos, no entanto, estava decidido a cruzar as montanhas com as suas carroças, mesmo que elas tivessem que ser desmontadas e transportadas individualmente em peças.

O grupo de Tregardt procedeu a fazer o seu próprio reconhecimento das encostas cada vez mais acidentadas que circundam o Olifants e encontrou uma encosta transitável que conduzia ao cume, depois de se ter que cruzar o Olifants várias vezes. Os vagões, às vezes parcialmente desmontados e arrastados sobre galhos, foram levados até à crista dos Drakensberg , uma empreitada que levou dois meses e meio a completar.

Uma vez acampado na zona mais baixa do outro lado dos Drakensberg, (“Lowveld”) eles encontraram os habitantes locais, os Sekororo. Durante o dia, eles eram presenteados com potes de cerveja marula pela tribo Sekororo, mas à noite os membros da mesma tribo roubavam repetidamente o seu gado. Sem encontrar outra maneira de recuperar das suas perdas e de forma a evitar ter mais delitos com os Sekororo, Tregardt recorreu a aprisionar alguns membros da tribo e usá-los como reféns.

A etapa final de trezentos quilómetros da jornada para a Lourenço Marques começou em 5 de fevereiro de 1838, e o rio Olifants foi atravessado pela 14ª e última vez. Aqui, os súbditos Sekororo, sob a égide de Ngotshipana, vieram-se desculpar e conseguiram garantir a libertação dos quatro reféns, presenteando Tregardt com duas grandes presas de elefante. As tribos para além do rio Blyde garantiram a Tregardt as suas boas intenções, e a velha chefe Mosali pediu a Tregardt para arbitrar uma disputa com seu o rival, Magupe. Uma tribo local também auxiliou o grupo a atravessar uma parte do percurso. Os rios Klaserie e Sand foram atravessados em sucessão, e a região que integra actualmente a parte central do Parque Nacional Kruger foi atravessada sem incidentes. A leste da cordilheira dos Montes Lebombo, encontraram várias aldeias do povo Gwamba. Todos os seus habitantes eram amigáveis; eles e seu chefe, Makodelana, ofereceram a Tregardt vários presentes.

O grupo alcançou o rio Incomáti cerca de dois meses depois do início da jornada no (mais tarde chamado) Lowveld. Foi difícil cruzar o rio e vários dos animais foram perdidos ou roubados durante a travessia. Mais tarde passaram por um posto avançado português e continuaram ao longo de pântanos, lagoas e aldeias de tribos costeiras, até chegarem ao pequeno e miserável Presídio de Lourenço Marques, no dia 13 de Abril de 1838.

Cinco anos antes, o Presídio fora atacado e completamente destruído por tribos locais.

Louis Tregardt faleceria em Lourenço Marques a 25 de Outubro de 1838.

O Monumento Memorial Louis Tregardt na Baixa de Maputo, a dois quarteirões da Praça da Independência, junto ao local do primeiro cemitério de Lourenço Marques (que na verdade ficava sob o prédio que está à esquerda. Enfim) onde Tregardt, a sua mulher e alguns companheiros foram sepultados.

Como referi, Tregardt teve a particulardiade de ter sido o único líder Voortrekker a manter um registo escrito diário da sua jornada, um precioso documento em termos de linguística e etnologia, para além das suas muitas observações sobre os padrões climáticos, a geografia, a vida selvagem do interior e o mundo que encontrou. O documento, que, de alguma forma, sobreviveu a longa e penosa saga do grupo e a própria morte de Tregardt, detalha as suas reflexões pessoais sobre as interações sociais e experiências do dia a dia da sua pequena comunidade, escrito numa forma de holandês corrupto que evoluiria para a actual língua dos boers, o afrikaans.

A cidade sul-africana de Trichardtsdorp foi assim nomeada em sua homenagem em 1899, assinalando sua estada de um ano na base do Zoutpansberg. Em Mpumalanga, uma cidade chamada Trichardt está situada ao longo da sua rota para o Norte. Como um pouco por toda a África do Sul, mas nestes casos ainda mais, decorre há alguns anos uma verdadeira “batalha toponímica” para se alterarem os nomes das localidades para designações não boer, o que dava para escrever um artigo separado.

Boa sorte aos envolvidos. A verdade é que mudar nomes não muda a história do que aconteceu. Mas se alguns dormirem melhor à noite por causa disso, tanto melhor.

02/09/2012

O MONUMENTO E SEPULTURA DE LOUIS TRICHARDT E SUA MULHER NA BAIXA DE LOURENÇO MARQUES, ANOS 1960

A entrada do monumento e sepultura de Louis Trichardt e da sua mulher na baixa de Lourenço Marques, anos 1960. Trichardt faleceu no então presídio português em meados de 1838, depois da migração dos seus, para o norte do Cabo, para escapar ao domínio britânico da então colónia do Cabo, conhecida como o Great Trek.

 

O interior do monumento. Louis Trichardt e a sua expedição (1836-1838) constituem um momento seminal na história da África do Sul, especialmente do povo Boer, com um impacto enorme em tudo o que se seguiu na África Austral. A descoberta da sepultura do casal Trichardt deve-se em grande parte a Alfredo Pereira de Lima, um historiador já celebrado aqui no Delagoa Bay World.

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