THE DELAGOA BAY WORLD

25/02/2021

ANTÓNIO CHAMPALIMAUD NUMA COUTADA EM MOÇAMBIQUE, ANOS 60

Imagem retocada.

A relação do lendário empresário português António de Sommer Champalimaud com Moçambique era umbilical. Apaixonou-se pela então colónia portuguesa na primeira vez que por lá passou em 1945 e cultivou essa paixão com vários importantes investimentos que ali fez. Entre eles, algumas coutadas que geria com cuidado e que visitava ocasionalmente.

António Champalimaud, sentado em baixo com um boné na cabeça, com família e amigos numa das suas coutadas de caça em Moçambique, década de 1960.

Dele, o antigo político Paulo Portas escreveria em 2018, ano do centenário do seu nascimento, o seguinte esboço biográfico (com pequenos retoques meus):

“Obstinado e disciplinado. Altivo e brusco. Corajoso e audaz. Duro e generoso. Criador e solitário. Espartano e gladiador. Inovador e aspiracional. Percursor e frontal. Caluniado e absolvido. Nacional, internacional e global. Patriota, africanista e europeu. Tão autoritário como liberal. Tão realista como visionário. Tão invejado mas nunca vencido. Incombustível e independente de todos. E ainda aventureiro, aviador e caçador. Assim foi a vida plena de António Champalimaud, nascido faz hoje um século, um português mesmo invulgar.

Ao contrário do que diz o mito urbano, António Champalimaud não nasceu rico. Numa casa com quatro filhos havia espaço – a Quinta da Marinha era então um imenso matagal – mas não havia luxos, e as solas gastavam-se até ao fim. Um Pai militar e rigoroso, alguns tabefes que mais tarde agradeceria, uma Mãe cuja ternura recordaria sempre. Num país devastado pela instabilidade de I República e que em poucos anos abriria falência, a educação de Champalimaud foi confiada aos jesuítas, de quem o próprio salientaria o contributo para hierarquizar prioridades e estar atento aos detalhes. Mas aos 19 anos, com a perda inesperada do Pai, a vida convocou António Champalimaud a responsabilidades que nunca mais cessariam. Havia dívidas e foi chamado ao juiz para vender bens e saldá-las. Apesar de não ter a maioridade legal, António Champalimaud recusou delapidar o património e assumiu o problema. Os primeiros 10 mil contos que ganhou em Angola, entregou-os ao credor. Sempre achou que dívidas são dependências e foi sempre independente, até da sua própria família.

É impressionante a velocidade com que tudo aconteceu depois.

Aos 24 anos, o tio – Henrique Sommer, um empreendedor – chama-o para administrador dos Cimentos de Leiria. E ele logo queria avançar para um forno novo.

Aos 26 anos, morre o tio e sobe a Presidente da empresa. Não tinha ainda 27 quando embarca no vapor para Moçambique, onde compra e refaz os Cimentos da Matola. Em escala passou por Angola e aí começou o projeto que concretizaria meia dúzia de anos depois: a cimenteira do Lobito. Aos 28 anos, pede a licença para abrir outra, desta vez perto da Beira.

Era já um dos maiores industriais em Moçambique, e queria sê-lo também na metrópole: aos 32 anos, adquire a Fábrica de Cimento do Mondego. O grupo cimenteiro de António Champalimaud torna-se rapidamente o segundo mais influente, em número de trabalhadores e valor dos equipamentos, num Portugal tragicamente atrasado na industria.

Aos 34 anos começa a batalha que considerou ter sido a mais dura e persistente da sua vida: a autorização para fazer a Siderurgia Nacional.

Aos 36, abre o projeto da Siderurgia à subscrição pública. Acontece o impensável num Estado Novo oficialmente avesso ao risco: comparecem 8 mil acionistas.

Aos 39 anos, obtém a licença contra ventos e marés: será o homem do aço e não apenas o rei do cimento.

Aos 41, inaugura o maior forno do mundo.

Aos 42, consciente das responsabilidades industriais e laborais que já tinha, percebe que necessita de seguros. Mas o dono da Confiança diz que só vende a companhia se Champalimaud levar também o Banco Pinto e Sotto Mayor. O salto é grande mas Champalimaud arrisca.

Em menos de dez anos multiplica por dez o capital do Banco, abre balcões no país inteiro e em África, torna-se a maior entidade creditícia dos Planos de Fomento. Mais tarde, lançaria o primeiro cartão de crédito em Portugal.

Ao mesmo tempo, com o concurso de 6000 operários a trabalhar a todo o gás, nasce uma cidade industrial no Seixal e a Siderurgia está pronta em 28 meses.

Tinha pouco mais de 40 anos quando começa a Guerra em África. Champalimaud reafirma o investimento africano, criando outra fábrica de cimento em Nacala.

Na mesma força de vida, expande-se para a fundição, a mecânica pesada, o papel e a celulose. Os investimentos faziam um todo lógico: a metalurgia para a siderurgia, a siderurgia para a economia, o papel para os sacos, os sacos para o cimento.

Aos 47, abre por isso novas fábricas de papel em Angola e Moçambique.

Conhece o Brasil em 1953. Não mais o largou: com 49 anos, a cimenteira de Minas Gerais está em processo de decisão. Importaria materiais e técnicos de Portugal.

Aos 49, propõe-se fazer uma refinaria em Sines, apoiada num complexo petroquímico de 21 unidades industriais. O Governo de Marcelo Caetano decide fazer Sines mas veta expressamente António Champalimaud.

Quando acontece o 25 de Abril, António Champalimaud tem 56 anos. Construíra uma fortuna que era a sétima maior da Europa. Será o último Português – até hoje – de quem tal coisa se pode dizer.

Aos 57 anos, em pleno PREC [Processo Revolucionáio em Curso, ou seja a maluqueira comunistóide, que durou quase dois anos], vê os seus activos nacionalizados, os seus bens expropriados, as suas contas congeladas, os seus administradores presos.

Dirá aos seus filhos: “teremos de recomeçar do zero”. Olha para o Estado português como gatuno e exila-se no Brasil.

Aluga umas águas furtadas no Rio de Janeiro e recomeça.

O mais impressionante da obra de António Champalimaud é que foi feita quase sempre pela pista de fora. Era temido no anterior regime e foi perseguido neste. Teve de se exilar duas vezes, primeiro no México para defender o seu nome, depois no Brasil, para escapar ao desvario revolucionário. A sua mentalidade nunca casou com os regimes em que lhe calhou viver: era investidor numa época de imobilismo; gostava de investir e não só repartir dividendos; tomava riscos a sério, em pleno Estado paternalista; queria industrializar e industrializar sempre mais, mas Salazar desconfiava disso; foi para África quando quase ninguém ia; e tornou-se o primeiro a defender a abertura ao Mercado Comum quando ficámos mais isolados; ia ver in loco como se tinham feito as grandes indústrias americanas – por exemplo o complexo de Henry Ford em Detroit – numa altura em que se viajava pouco; acreditou sempre na liberdade económica, apesar do coletivismo ter decapitado o capitalismo português. Tinha visão, escala, ambição e arrojo.

Por isso, chocou imensas vezes com vários defeitos das elites nacionais: a ideologia do “ser pequenino é que é bom”, a proteção descarada dos incumbentes, a inveja de qualquer riqueza – e aquela inclinação para criticar tudo o que é novo, contém diferença ou implica dimensão. Foi moderno antes do tempo, resistente em tempo de vésperas e três vezes pelo menos não se deixou derrubar mas levantou-se do chão. O condicionamento industrial, nome técnico de política económica do Estado Novo, disse-lhe várias vezes que não, atrasando o desenvolvimento. Morreu sem jamais compreender que ganhou o país com o “marxismo à portuguesa”, cuja política foi a de estatizar o que era nacional e com alguma sabujice deixar intocado o que era estrangeiro. Chorou quando viu pela última vez a bandeira portuguesa em Nacala. Do primeiro ao último dia viveu com a máxima que o definia: “se te fizeres de minhoca não estranhes que te esmaguem”. António Champalimaud foi ele próprio: não queria outra coisa senão existir por si e ser dono do seu destino.

Quando o conheci melhor, já ele tinha voltado do Brasil – onde se tornara o empresário agro que melhor rentabilizava a terra – , e aceitava, com o freio nos dentes, pagar em concurso para reaver o que já tinha sido dele. Admirava Thatcher, Reagan, Deng Xiaoping e Sá Carneiro. Só o deixaram reconstruir o grupo financeiro, ele que era acima de tudo um industrial. Tinha uma indelével melancolia sobre África, ocorrendo-lhe que mais Antónios Champalimaud houvera, e o progresso traria desenvolvimento e com o desenvolvimento se faria o caminho sereno para Estados que, como lhe dissera um dia o Pai, “serão novos Brasis”. Não perdoava a descolonização tal como acontecera. Achava o país excessivamente deslumbrado com a Europa, ele que fora pioneiro a defendê-la; temia que os pilares do nosso sistema económico fossem engolidos por Espanha. Tendo sido dos raros Portugueses a recusar uma reunião com Salazar, e a cancelar outra com Marcelo Caetano, achava o primeiro íntegro e o segundo hesitante. “Respeito é uma coisa, pôr-me de cócoras é outra”, repetia, sem condescendência. Há quem diga que teve o pressentimento daquilo em que o sistema financeiro se viria a transformar e perto do fim, vendeu.

No segredo de um testamento, tomaria a última e espantosa decisão que deixaria em desconfortável silêncio os seus vários inimigos. Usou a quase totalidade da parte disponível da sua futura herança, cerca de 500M€, para criar uma fundação que teria o nome do Pai e da Mãe, mas não administradores familiares, e seria dedicada à saúde, porque a saúde é transversal: atinge todos, portugueses ou estrangeiros, ricos ou pobres, crentes ou ateus, novos ou velhos. É essa Fundação, a Champalimaud, que entrega todos os anos o maior Prémio do mundo para reconhecer a ciência e a pesquisa no âmbito da visão, e conta com mais de 400 cientistas e investidores, no domínio do cancro e das neuro ciências. Silenciosamente, fazem recuar a dor e progredir a esperança.”

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