THE DELAGOA BAY WORLD

26/02/2021

A HISTÓRIA DA ESTÁTUA DE SALAZAR EM LOURENÇO MARQUES

Imagens retocadas.

Esta história já foi abordada aqui, aqui.

Na primeira imagem em baixo vê-se a original estátua de António Oliveira Salazar – bem, uma cópia, feita pelo escultor Francisco Franco – maior e em pedra, nas vestes do seu doutoramento em Coimbra, que foi colocada com destaque em frente à fachada principal do liceu inaugurado em 6 de Outubro de 1952 e que teve o seu nome até meados de 1974. Segundo o Luis Silva e Sousa, cerca de 1963 “alguém em Lourenço Marques que não morria de amores pelo velho ditador” decapitou a estátua de pedra detonando, uma noite,  um pequeno engenho explosivo (imagino o filme que foi com a Pide e Cia Limitada naquela altura) tendo então a mesma sido posteriormente substituída por uma idêntica mas ligeiramente mais pequena, em bronze.

Em 1963, Salazar tinha 72 anos de idade e já governava Portugal com mão de ferro há 31 anos consecutivos, através de um regime de partido único que comandava pessoalmente com particular aptidão e com o apoio de instrumentos de repressão que eram eficazes em identificar e neutralizar qualquer oposição. Ai de quem abrisse a boca contra o seu regime – fosse branco ou preto.

Muitos consideraram bem-vinda a sua postura, após o quase absoluto caos que se viveu durante e especialmente no fim da I República. Surpreendentemente, em seguida, cometeu a façanha de manter Portugal fora da II Guerra Mundial. A enorme estátua do Cristo-Rei em Almada, Portugal, uma ideia de Manuel Cerejeira, compagnon de route de Salazar e Cardeal Patriarca de Lisboa entre 1929 e 1971, testemunha em parte a gratidão dos portugueses pelo que Salazar fez.

Assim, apesar de inúmeras vicissitudes, em 1963 Salazar parecia estar para ficar, de pedra e cal.

Notoriamente, apesar de todos os sinais e pressões ocorridas antes e depois do término da II Guerra Mundial (vencida por duas super-potências alegadamente “anti-coloniais” os EUA e a União Soviética, se bem que por razões diferentes) e os países europeus aceleradamente negociarem rápida, se atabalhoadamente, a independência das suas dependências coloniais em África, Salazar mantinha a peregrina opinião que, por supostas “especificidades portuguesas”, o seu país seguiria um caminho diferente. Quando muito, as suas colónias seriam “novos Brasis”, mas isso mais ou menos no dia em que as galinhas tivessem dentes. Até porque Moçambique estava ainda quase na idade da pedra em termos económicos e educacionais, e, igualmente importante, estava confortavemente acolchoado por quatro ex-colónias britânicas que explicitamente negavam os direitos aos seus cidadãos e achavam a mesma coisa (África do Sul, Swazilândia, Rodésia do Sul e Niasalândia). A excepção ocorreria precisamente em 1963, com o longínquo Tanganica, lá no Norte, cujo líder, Julius Nyerere, alojava um bando de nacionalistas negros moçambicanos constituídos numa atribulada Frente, que se preparavam para iniciar uma guerra para acabar com a soberania portuguesa no território. Mas no meio estava Cabo Delgado, um virtual deserto, e a enorme Zambézia, que não mostrava quaisquer sinais de qualquer rebelião contra a Pax Lusitana. Portanto a sua decisão foi aguentar o embate.

Claro que, subjacente, estaria na sua mente, eventualmente, o destino dos cerca de 100 mil portugueses a viver em confortável recato em Moçambique e a suspeita que uma retirada portuguesa levaria a uma ditadura comunista, à destruição do investimento e da economia e ao surgimento de uma elite predadora que capturaria toda a riqueza de forma ilícita. Nos anos 60, era o que se observaria um pouco por todo o continente.

Salazar achava também que, sem colónias, Portugal seria uma nação irrelevante. Uma Catalunha mas sem dinheiro nem talento. E havia a História. Em 1963, já tinha lidado com o início da guerrilha em Angola, com o caso Santa Maria, com a perda de Goa e com as resoluções das Nações Unidas.

Enfim.

Localmente, o decapitamento da sua estátua em 1963 foi, portanto, e então, convenientemente, condenado e, presumo que  via a censura local, gerido com a habitual parcimónia, relegado para a importância de uma mera brincadeira de mau gosto promovida por miúdos. A Cidade, e o regime, não perderam o sono por causa do incidente.

A estátua de pedra do ditador português em 1961, em frente à chancelaria do liceu com o seu nome no Bairro da Polana, em Lourenço Marques, uma espectacular e aparatosa obra de luxo com que o regime de então presenteou a cidade, que até então só dispunha do venerando e já um tanto pindérico Liceu 5 de Outubro, nas suas traseiras (onde, ainda assim, prontamente se instalou a Escola Comercial Azevedo e Silva). Formalmente, ali funcionava também o Liceu feminimo, Dona Ana da Costa Portugal, onde muitas bonitas meninas locais estudaram e de vez em quando piscavam o olho aos rapazes do Liceu Salazar.

 

Rara fotografia de 1963  onde se pode ver, ao fundo, o pedestal da estátua do Dr. Salazar, agora decapitada, com um tapume de madeira, à espera que, de Portugal, viesse nova estátua, esta de bronze, para não haver mais confusões.

Ao contrário de parte significativa das obras de arte e estatuária portuguesa alusiva a Moçambique (no que concerne a sua história) no após-independência, que foram ostensivamente apeadas e guardadas num canto ou destruídas (em Portugal fez-se mais ou menos a mesma coisa), a obra evocativa de Salazar não teve direito a lugar cativo na curiosa piro-histórico-turística “Fortaleza” de Maputo, a nova capital do país nascente. Ditou o freudiano e aparentemente persistente trauma frelimiano com Salazar (há uma longa entrevista de Joaquim Chissano – que estudou no Liceu Salazar, um dos raros moçambicanos negros que por ali passou nos anos 50 e se tornou num destacado estadista do novo regime – a explicar toda esta dialéctica) que a estátua de cobre de Salazar – a segunda do liceu – fosse ostensivamente encostada a uma parede num canto das traseiras da actual Biblioteca Nacional de Moçambique, que era a antiga Biblioteca Municipal em frente ao Hotel Tivoli na baixa de Maputo (e antes disso a Fazenda de Moçambique).

Ou seja, ele está lá, mas não está lá.

O que é curioso, pois, literalmente, em termos da história colonial portuguesa em Moçambique, Salazar é sem qualquer margem de dúvida incontornável, o elefante na sala que todos parecem querer fingir que não está ali. Faz lembrar aqueles faraós egípcios em relação aos quais, depois de morrerem, por terem sido impopulares, os seus sucessores gastaram fortunas a destruir as suas efígies, a riscar os seus nomes e feitos do registo histórico e até a proibir os seus nomes de serem mencionados. Por maioria de razão, mais do que qualquer outro indivíduo, António de Oliveira Salazar foi o pai, a mãe e o filho do colonialismo português a partir de 1945. Não deve ser ignorado. Deve ser encarado de frente e estudado. Para que gerações futuras de moçambicanos possam entender o que foi, quando foi e porque foi. A antiga estátua do Liceu Salazar, que é um objecto de arte que até tem uma história interessante, se calhar ajudava no processo.

A nova estátua, agora feita de bronze, já colocada em frente ao Liceu, 1964.

 

A mesma estátua, actualmente, algures nas traseiras da Biblioteca Nacional, na Baixa de Maputo.

28/05/2019

“O CATOLICISMO E A POLÍTICA NO CENTRO DE MOÇAMBIQUE, 1940-1986” DE ERIC MORIER GENOUD

Vai ser lançada no mercado dentro de duas semanas uma obra nova e fascinante da autoria do Professor Eric Morier-Genoud (Professor de História de África na Queen’s University em Belfast, no Reino Unido ) um dos académicos de referência da actual geração relativamente a Moçambique.

Intitulada ” O Catolicismo e a Política no Centro de Moçambique, 1940-1986″ (no original, Catholicism and the Making of Politics in Central Mozambique, 1940-1986) o trabalho analisa um tema de eminentíssimo interesse e importância para um melhor entendimento da história recente de Portugal, de Moçambique e da Igreja Católica, relacionado com os eventos na Beira e no Centro de Moçambique, no periodo decorrido entre 1940, ano da Concordata e do Acordo Missionário, e 1986, .

O livro será publicado em língua inglesa, seguindo-se posteriormente, espera-se, uma edição em língua portuguesa.

Capa da nova obra de Eric Morier-Genoud.

Com 264 páginas, o livro tem a seguinte estrutura:

Introdução
A construção da diocese da Beira
Diversidade e Dinâmica da Igreja Imperial
A formação de uma igreja africana
O Surgir da Tempestade: o Vaticano II encontra o nacionalismo africano
Descolonização? Guerra, Implosão e o Vaticano
Independência: entre a revolução e a contra-revolução
Epílogo, Notas e Bibliografia

Para além de escritinar o complexo panorama católico moçambicano nas décadas antes e depois da Independência, a obra debruça-se sobre, entre algumas figuras paradigmáticas do catolicismo português daquela era e referidos neste blog, tais como os Cardeais Manuel Cerejeira e Teodósio Clemente de Gouveia, e os Bispos Dom Custódio Alvim Pereira e Dom Sebastião Soares de Resende, o primeiro bispo da Beira.

O Professor Eric Morier-Genoud.

Uma nota do editor descreve assim a obra:

Este livro foca-se na diversidade interna e complexidade da Igreja Católica. Destina-se a explorar, decifrar e explicar como funciona a instituição católica, como as suas políticas são feitas e como estas impactaram o contexto em que operava. Usando a diocese da Beira no centro de Moçambique como estudo de caso, e seguindo os pensamentos de Max Weber, o autor, Eric Morier-Genoud, adoptou uma nova abordagem “horizontal” de olhar as congregações dentro da Igreja como uma série de entidades autónomas, em vez de se concentrar na estrutura hierárquica da Instituição.

Entre 1940 e 1980, haviam na diocese da Beira cerca de quinze congregações diferentes, desde jesuítas a franciscanos, de burgos a padres Picpus. Como aconteceu em muitas outras áreas do mundo, a década de 1960 trouxe conflito às congregações católicas no centro de Moçambique, com o nacionalismo africano e as reformas do Vaticano II desempenhando um papel de relevo. O conflito manifestou-se de muitas maneiras: a fuga de um bispo da sua diocese, uma congregação abandonando o território em protesto contra o conluio entre igreja e estado e uma declaração de luta de classes na igreja. Todos estes eventos, ocorridos no contexto da guerra pela independência de Moçambique, tornam a região um local especialmente frutífero para a análise pioneira oferecida neste importante estudo.

A publicação tem a chancela da Imprensa da Universidade de Rochester. Para mais informação sobre o lançamento, ler aqui.

08/12/2018

NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO E LOURENÇO MARQUES

Não estou dentro dos mistérios associados a todos os dogmas e raciocínios da Igreja Católica e Apostólica Romana, especialmente no que concerne as suas figuras veneradas, como é o caso de Nossa Senhora da Conceição.

Mas, indubitavelmente, há uma relação especial entre esta figura da Igreja Católica e Portugal.

E com Lourenço Marques, desde o momento da sua fundação, no final do Século XVIII.

Lá iremos.

Segundo a Bíblia, Maria, também chamada Nossa Senhora da Conceição, era a Mãe de Jesus Cristo e mulher de José, um carpinteiro. O termo “conceição” deriva dela ter concebido aquele que, segundo a crença cristã, era filho de Deus.

Como tal, Maria, apesar de ser mulher, Nossa Senhora da Conceição, sempre ocupou um lugar de algum destaque na narrativa cristã, eventualmente tornada na única religião permitida no império romano pelo imperador romano Constantino (reinou entre 306 e 327), e que o sobreviveu, até hoje.

Entretanto passaram 1500 anos.

Diz a conhecida astrologista e intérpetre de Tarot Maria Helena no seu blog que “a celebração de Nossa Senhora da Conceição honra a conceção de Maria, que foi concebida sem haver pecado. A palavra “imaculada” deriva do latim “sem mácula” ou seja, sem mancha. No dia 8 de Dezembro de 1854, o Papa Pio IX [papa entre 1846 e 1878, o mais longo mandato papal e um dos mais controversos na história do catolicismo] definiu e proclamou, através da bula “Ineffabilis Deus”, a concepção imaculada de Maria como um dogma religioso e desde então esta data é celebrada pela Igreja Católica e por todos os fiéis. O dia 8 de Dezembro antecede em nove meses a data da natividade de Maria, que é o dia 8 de Setembro, e por essa razão esta data ficou definida pela Igreja Católica como a data em que Maria foi concebida.

Em bom português, o relato bíblico original sugeria vagamente que Maria concebeu Jesus Cristo sem ter tido relações sexuais (o perpétuo “pecado” católico), contribuindo para o seu estatuto como filho de Deus. Pio IX proclamou-o como facto inquestionável.

Muito antes do pronúncio de Pio IX, no entanto, já um monarca português, João IV,  tomara uma posição semelhante em relação a esta figura do catolicismo e fizera algo relativamente insólito. D. João IV era o  Bragança que se chegou à frente em 1640 para se tornar o monarca de Portugal, quando alguns portugueses se revoltaram, com sucesso, contra a Dinastia espanhola dos Felipes, detentora da coroa de Portugal desde 1580. Carminda Neves assim o relata:

Por proposta sua, durante as Cortes reunidas em Lisboa desde 28 de Dezembro de 1645 até 16 de Março de 1646, afirmando o soberano «que a Virgem Maria foi concebida sem pecado original» e comprometendo-se a doar em seu nome, em nome de seu filho e dos seus sucessores à Santa Casa da Conceição, em Vila Viçosa, «cinquenta cruzados de oiro em cada ano», como sinal de tributo e vassalagem, a dar continuidade à devoção de D. Afonso Henriques, que tomara a Senhora por advogada pessoal e de seus sucessores. O acto da proclamação de Nossa Senhora da Conceição como Padroeira de Portugal, efectuado com a maior solenidade pelo monarca a 25 de Março desse ano (1646), alargou-se a todo o País, com o povo, à noite, a entoar cânticos de júbilo pelas ruas, para celebrar a Conceição imaculada da Virgem, ou, mais precisamente, a Maternidade Divina de Maria. Assim se tornou Nossa Senhora a verdadeira Soberana de Portugal, não voltando por isso, desde aí, nenhum dos nossos reis a ostentar a coroa, direito que passou a pertencer apenas à Excelsa Rainha, Mãe de Deus. Em 1648 D. João IV manda cunhar moedas de ouro e de prata, tendo numa das faces a imagem da Imaculada Conceição com a legenda Tutelaris Regni – Padroeira do Reino. Em 1654 ordena que sejam postas em todas as portas e entradas das cidades, vilas e lugares do reino pedras lavradas com uma inscrição alusiva à Imaculada Conceição (lápides essas ainda hoje existentes em certos locais). Outros reis seus sucessores continuaram a tradição deste culto de homenagem a Nossa Senhora, caso de D. João V, em 1717, que recomenda a todas as igrejas a celebração anual com pompa e solenidade da Festa da Imaculada Conceição, enquanto D. João VI emite um decreto criando a Ordem Militar de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa e a Cabeça da Ordem (lugar principal) na Sua Real Capela.

Ainda hoje, o dia 8 de Dezembro é um feriado nacional em Portugal e, se me recordo, era também o Dia da Mãe na minha infância.

Acontece que, no início do Século XVI, estando os portugueses na posse de uma minúscula língua de terra que era a ilha de Moçambique, situada estrategicamente na costa oriental africana e na rota para o Oriente, que trouxe à Europa uma mudança civilizacional, ali edificaram gradualmente uma gigantesca fortaleza, cujo padroeiro católico é São Sebastião, evocado nas sete setas cruzadas que adornaram a bandeira provincial durante boa parte do Século XX.

No último quarto do Século XVIII (1782, se me recordo) os poderes lusos de então decidiram criar uma pequena guarnição permanente, estacionada numa imunda e insalubre língua de terra na margem Norte da então Baía do Espírito Santo, num local que não tinha nome conhecido e a que chamavam “Lourenço Marques”. Eufemisticamente, deram à pequena fortificação de lama, pedras e caniço ali erguida a designação de Presídio ou Fortaleza de …. Nossa Senhora da Conceição.

Que, por essa via, se iria tornar na Padroeira da futura cidade.

O Núcleo Museológico da Cidade de Lourenço Marques, construído nos anos 40 a partir das ruínas da Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição, década de 1960. O projecto do Núcleo Museológico foi da autoria de Pancho Guedes. As principais diferenças entre o que se vê e como era são que 1) a versão anterior era um pardieiro improvisado com materiais de terceira qualidade, 2) a inexistência de uma muralha a Sul (o que existia antes é a linha mais clara que se ê na base dessa muralha) e 3) o mar batia nesta parte Sul.

A cidade, sempre ténue, insegura e frágil, ainda levaria mais que cem anos a surgir e mesmo aí só após se manifestar o braço colonial britânico a Sul e os Boers a Oeste, e depois de descobertas as jazigas de diamantes e ouro naquela região e se compreendeu que, no contexto das comunicações de então (barco e caminho de ferro) um porto e uma linha de caminho de ferro a partir dali para o interior seriam investimentos estratégicos.

Lourenço Marques como era fora do núcleo original que é hoje a sua Baixa.

Em 1879, num acto de algum arrojo se se levar em conta a sua localização – no preciso local onde hoje está edificada a antiga sede do Rádio Clube de Moçambique, que na altura era ainda mato cerrado bem fora do perímetro urbano- os citadinos edificaram uma igreja, a primeira de Lourenço Marques, a que deram o nome de Igreja de Nossa Senhora da Conceição.

A futura Igreja de Nossa Senhora da Conceição a ser construída em Lourenço Marques, cerca de 1880.

A igreja foi inaugurada em 1881.

Ali ao lado, num ponto estratégico de visibilidade, construíram os britânicos o seu consulado, que dobrava como residência consular.

A Igreja de Nossa Senhora da Conceição, de costas para o futuro Jardim Vasco da Gama. Ao fundo, o Consulado Britânico, que hoje é a sua embaixada em Maputo.

A então Avenida Dom Manuel, em Lourenço Marques, década de 1890, com a igreja original ao fundo. Onde se encontram os bungallows improvisados, seriam construídos a futura Sé Catedral, a Câmara Municipal e a Praça Mouzinho (hoje Praça Samora). Litografia pintada por mim.

Pouca gente hoje sabe que ao Alto-Maé correspondeu uma Freguesia cujo nome formal era …. Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Alto-Maé.

O estilo desta primeira igreja tem zero a ver com o que quer que seja que se fizesse em Portugal em termos da sua arquitectura. Olhando para as imagens, parecia ser uma igreja episcopal inglesa. Mas ali foram baptizadas, casadas e feitos elogios fúnebres, a gerações de habitantes da Cidade.

O Altar da velha Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Lourenço Marques em 1919, com a estátua representando Nossa Senhora da Conceição Imaculada. Uma rara foto a preto e branco tirada por Louis Hily e colorida por mim. O original desta foto é hoje propriedade do meu caro Paulo Azevedo.

Com o crescimento da Cidade, na segunda década do Século XX, as pessoas começaram a achar que a sua igreja era pequena demais para o número de crentes que a frequentavam. Mas salvo uns bravos mais dedicados, ninguém sonhava em fazer outra – certamente nada da escala e envergadura da que veio a ser inaugurada com enorme pompa e circunstância em Agosto de 1944.

Para uma Lourenço Marques cosmopolita, aberta ao Mundo, eminentemente urbana, relativamente sofisticada ainda que colonial, com igrejas de várias denominações, gentes oriundas de quase todo o mundo, casinos e casas de prostituição legais, uma forte dose laica e com o maior templo maçónico de todo o espaço português, a edificação de uma nova igreja de grande dimensão não era assunto leve.

A história a partir daí é magistralmente contada numa interessantíssima, magnífica e eminentemente legível tese académica (212 páginas, com dezenas de fotos no fim) de Ana Furtado, defendida em 2017 e publicada recentemente. Que choca e delicia pela erudição e abrangência dos assuntos ali abordados.

Segundo a Ana, e resumindo as coisas, a construção da actual Catedral deve-se a todo um contexto de então e, localmente, principalmente a 4 pessoas.

O contexto? António de Oliveira Salazar, um nacionalista convicto e um católico relativamente ferrenho, toma o poder em 1928 e, com uma ajudinha do seu amigo o Padre Cerejeira, na altura nomeado Cardeal em Lisboa, principia a construir o Estado Novo, com uma forte componente religiosa, que ele considerava parte da “fibra da Nação”. Essa obra incluiu a assinatura de vários acordos com a Santa Sé e um investimento considerável nos esforços de implantação e reforço das instituições católicas em todos os territórios que na altura integravam Portugal. Simultaneamente, desencadeia um conjunto de acções com vista a reforçar um sentido de objectivo à sociedade portuguesa, baseada no passado histórico, que se procurou glorificar até ao ponto da exaustão.

É neste contexto que a ideia de se fazer uma nova igreja em Lourenço Marques evolui, com uma crescente atenção e eventualmente, quase apropriação por parte do Estado, para os seus desígnios de glorificação nacional.

As quatro pessoas:

  1. o missionário franciscano e Prelado, D. Rafael da Assunção, que para além de puxar por este projecto, foi a força por detrás da construção das igrejas da Missão Franciscana da Beira, de Homoíne e de São José de Lhanguene.
  2. o Arquitecto António Couto Abreu, que desenhou um projecto de uma igreja (assinado a 20 de Setembro de 1922), considerado algo faraónico e inviável, pois não havia dinheiro e quase tudo que ele previa tinha que ser importado (nota: houve um projecto anterior por Tito Fernandes, mas esse foi logo às urtigas);
  3. o Engº Marcial Freitas e Costa, nos CFM desde 1922, que apresentou o projecto que foi executado, em linhas modernas, simples – e em cimento armado. E que depois foi a sua alma, executando-o.
  4. o lendário Engº Francisco Pinto Teixeira dos Caminhos de Ferro de Moçambique, que, depois de anos e anos de a Câmara Municipal levantar obstáculos ao projecto, ele, que então havia recentemente assumido a presidência da Câmara Municipal de Lourenço Marques, aprovou o projecto de Marcial (os dois conheciam-se muito bem dos CFM) três dias depois de ter sido submetido.

Marcial Freitas e Costa, o criador do projecto da Sé Catedral, no seu gabinete de trabalho nos Caminhos de Ferro em Lourenço Marques, década de 1930. Não recebeu um tusto do trabalho que fez para a sua edificação. Foto reproduzida da tese de Ana Furtado.

Finalmente, a primeira pedra da futura Sé Catedral é lançada e abençoada com pompa no dia 28 de Junho de 1936.

A construção foi sendo feita. Havia o desejo de a inaugurar em 1940 – ano em que o Regime comemoraria estrondosamente a Fundação, a Restauração, a Portugalidade, etc. Mas as obras atrasaram-se porque entretanto chega a II Guerra Mundial e as coisas complicam-se rapidamente. Havia ainda menos dinheiro e ainda faltava fazer muita coisa. Um exemplo que a Ana dá é o dos vitrais da futura igreja, que foram fabricados na Alemanha e que quando estavam encaixotados para serem enviados para Moçambique, foram apanhados num porto holandês justamente quando a Alemanha invadiu aquele país em 1940. Ao mais alto nível da diplomacia, andou-se às voltas com os alemães para encontrarem e entregarem os vitrais a Portugal, o que foi feito.

A futura Sé Catedral em construção, final da década de 1930. Foto do Edgar Marques.

A igreja foi inaugurada no dia 14 de Agosto de 1944, ainda decorria a guerra, mas já se prenunciava a derrota de Hitler e a hegemonia dos EUA e da União Soviética. Portugal manteve a neutralidade, um pouco colada com cuspo mas enfim. As cerimónias foram lideradas pelo Cardeal Cerejeira, que viajou de barco até Lourenço Marques, a primeira (e a única) vez que um cardeal português se deslocou a uma colónia. Por se ter divorciado uns tempos antes, Ana sugere que Marcial Freitas e Costa foi considerado persona non grata na cerimónia inaugural e por isso terá aproveitado uma viagem aos EUA pouco antes (para ver se arranjava ferro para os CFM) para de seguida tirar uma licença graciosa em Portugal, pelo que nesse dia não estava em Lourenço Marques. Outros tempos.

A Sé Catedral na actualidade. Mantém a traça original mas é preciso dinheiro para a sua manutenção.

 

A fachada frontal.

 

Os vitrais, originalmente feitos na Alemanha de Hitler e trazidos de barco para Lourenço Marques, maioritariamente pagos do bolso de Marcial Freitas e Costa. Foram “apanhados” em caixotes num porto da Holanda quando os exércitos de Hitler invadiram aquele país. Em baixo, uma estátua evocativa de Nossa Senhora da Conceição.

 

O enquadramento da Sé Catedral, anos 60, ao lado da Câmara Municipal e do monumento a Mouzinho de Albuquerque. Desde então, saiu Mouzinho e entrou Samora.

Em 1944, velha a Igreja de Nossa Senhora da Conceição foi desconsagrada (passando a sua consagração para a nova Sé Catedral, cujo nome formal ainda é Igreja de Nossa Senhora da Conceição) e a seguir foi demolida. No mesmo local, sete anos depois, foi inaugurado no local o Palácio da Rádio, a então nova sede do Rádio Clube de Moçambique.

O Palácio da Rádio, sede do Rádio Clube de Moçambique, década de 1960, implantado no mesmo local onde, mesmo em frente ao velho edifício que se vê à direita, estava a original Igreja de Nossa Senhora da Conceição.

Marcial Freitas e Costa faleceu precisamente quatro meses depois, em Lourenço Marques. O seu corpo foi posteriormente trasladado para um cemitério em Portugal.

Merece ser recordado neste dia 8 de Dezembro de 2018, 372 anos após a proclamação de D. João IV, 236 anos após a fundação do Presídio de Lourenço Marques, 164 anos após a proclamação do Papa Pio IX, 137 anos após a inauguração da primeira Igreja de Nossa Senhora da Conceição em Lourenço Marques, e 74 anos após a inauguração da Sé Catedral e do seu desaparecimento físico.

 

21/02/2012

SALAZAR E O CARDEAL MANUEL CEREJEIRA, ANOS 1960

Filed under: Cardeal Manuel Cerejeira, PESSOAS, Salazar — ABM @ 10:53

Fotografia restaurada.

 

O Cardeal Manuel Cerejeira e António Oliveira Salazar em Lisboa, anos 1960.

Site no WordPress.com.