THE DELAGOA BAY WORLD

14/05/2020

O SULTÃO DE ZANZIBAR E A LINHA ISLÂMICA AO NORTE DE MOÇAMBIQUE

Imagens retocadas. O original da primeira pertence aos arquivos colonais da Alemanha.

Quem quiser entender melhor a história de Moçambique deve primeiro estudar a presença árabe islâmica na costa oriental africana e especialmente a história da Ilha de Zanzibar, nomeadamente antes e depois da tomada daquela ilha aos portugueses, cerca do ano de 1700, e a constituição de uma espécie de “estado islâmico” sustentado no comércio de (pois é) escravos e marfim. Ver em baixo um resumo muito resumido da Wikipédia, delapidado por mim.

Nos tempos que correm hoje, em que todos os analistas e académicos especializados nesta já cinquentenária “soberania frelimiana”, se atropelam à procura de conjuras e de justificativos para a chamada “insurgência” na agora “província rebelde” de Cabo Delgado, é sempre bom recapitular.

O palácio do sultão de Zanzibar, na Ilha de Zanzibar, segunda metade do Século XIX.

 

A Ilha de Zanzibar, epicentro de um estado árabe islâmico que chegava quase até à costa ocidental de África entre os Séculos XVIII e XIX e que fazia o colonialismo europeu parecer um picnic.

O Resumo da História de Zanzibar na Wikipédia (pesadamente editado por mim)

Estima-se que nas Ilhas índicas de Zanzibar e Pemba se fixaram as primeiras povoações árabes muçulmanas na costa da África oriental, há cerca de mil anos. Em Kizimkazi, na ilha de Zanzibar, existe uma inscrição numa parede que afirma “o Cheque al-Sayis Abi Amran” ordenou a construção duma mesquita naquele lugar, “no primeiro dia do mês de Dhul-Qada do ano 500” (da Hégira), o que no calendário Juliano significa o dia 27 de Julho de 1107.

Os árabes chamavam à ilha “Zanj-Bar”, que significa, na sua língua, “costa dos Zanj” ou “dos negros”.

Por essa altura, Zanzibar importava cerâmica do golfo pérsico e rapidamente se tornaria numa base para mercadores árabes, onde uma das mercadorias principais era o tráfico de escravos. O primeiro europeu a visitar a ilha foi o navegador português Vasco da Gama, aquando da sua épica primeira viagem até à costa indiana em 1499, acabando os portugueses por (essencialmente ao tiro e à espadeirada) estabelecer ali um entreposto comercial e uma missão católica, dominando Zanzibar e boa parte da costa oriental africana até a Arábia, durante os dois séculos seguintes.

Por volta de 1698, esse domínio degradara-se. Sinal desse enfraquecimento, o sultanato de Omã conquistou Zanzibar aos portugueses (essencialmente, ao tiro e à espadeirada) que de seguida tornou-se no principal entreposto comercial do oceano Índico Ocidental, vendendo escravos (capturados em gigantescos raids na contracosta) e marfim para o mundo árabe, a Índia e também para o mercados nas rotas do Oceano Atlântico.

É por esta altura que se começa a formar e consolidar uma nova linha invisível de demarcação entre o mundo islamizado e afro-islamizado e o mundo controlado (muito tenuamente) pelas autoridades portuguesas. Essa linha “de soberania” situava-se mais ou menos em Angoche, a Sul da Ilha de Moçambique – ilha crucial para a rota da Índia e que, justamente, por ser uma ilha fortificada, foi sempre impregnável, apesar de se situar, neste contexto, em terreno hostil.

A Norte dessa linha, os portugueses iriam ter sempre que lidar com os árabes de Oman, com os nativos muçulmanos rebeldes – e iriam ter sempre problemas.

Em 1841, o sultão Said Ibn (1805 – 1856) mudou a sua corte de Omã para Zanzibar.

Foi naquela altura que o muito cristão e muito britânico e celebrado Dr. David Livingstone andou por aquelas paragens, sendo que, em consequência do que viu, deixou relatos assustadores sobre a escravatura praticada pelos súbditos islâmicos do Sultão de Zanzibar, que, uns anos depois, dividiu os domínios entre Oman e Zanzíbar.

Em 1873, John Kirk, cônsul britânico no sultanato durante mais que vinte anos (entre 1866 e 1887), persuadiu finalmente o sultão de então, Sayyid Sir Barghash bin Said Al-Busaid, a pôr fim ao tráfico de escravos – bem, mais ou menos. Este era um objectivo da política externa britânica desde há décadas. Este filme iria durar pelo menos durante mais vinte anos.

Barghash bin Said Al-Busaid.

Entretanto, na sequência da Conferência de Berlim, os alemães, agora unidos no seu Primeiro Reich, decidiram (pura e simplesmente) ficar com o que se tornou no Tanganica, que constituía a maior parte do Sultanato no território continental africano – em frente a Zanzíbar.

A ponta Sul desse território confinava com o que os portugueses da altura diziam aos quatro ventos que era seu – o Rio Rovuma.

Na nova colónia alemã, tal como acontecia com os vizinhos portugueses, fez-se pouco ou nada.

 

Os rapazes de Mouzinho posam para a fotografia durante a chamada Campanha dos Namarrais, 1897. Aquilo correu mal e a tropa portuguesa teve que voltar lá umas vezes para “pacificar”.

Lá de cima, vieram dois salvos de aviso: no Planalto, a tribo dos Macondes, que eram tudo menos “moçambicanos”, reiteraram que não reconheciam e não se submeteriam à Pax Lusitana. Durante a Grande Guerra, prestarão assistência aos alemães; e mais ao lado, no que viria a ser o Território do Niassa, um outrora sultão muçulmano, de nome Ce Bwonomali Mkandu (aka Mataca III) captura, manda cortar o pescoço a um previamente quase desconhecido Tenente Eduardo Valadim, e ostensivamente avisa os portugueses que desapareçam dali para fora. Mataca III e os seus cerca de 45 mil súbditos pagarão caro pela brincadeira: em 1912 foram todos exilados a tiro para a África Oriental Alemã, a sua capital foi arrasada e no seu lugar edificado um forte, chamado Valadim, localidade que ainda existe com a mesma toponímia, para variar (hoje está no meio do Bloco de Caça D-2 da Província do Niassa).

E houve ainda a Guerra dos Namarrais, que, essencialmente por falta de recursos e erros de táctica de logística, se prolongou durante quase quinze anos, mas que tinha subjacente a mesma lógica.

O Tanganica foi alemão até meados da I Guerra Mundial, quando passou para controlo britânico.

Logo a Sul do Rio Rovuma, apesar de perdas consideráveis e largamente fúteis (e portanto trágicas) os portugueses aguentaram o embate e permaneceram. Em 1919 receberam o Triângulo de Quionga como saguate.

E nos 80 anos que se seguiram, todos sem excepção, incluindo os Libertadores, aparte o slogan fácil e despido de qualquer significado real de “Moçambique do Rovuma ao Maputo”, se esqueceram daquilo, pois o verdadeiro negócio, o dinheiro e o poder estavam em Lourenço Marques, depois Maputo.

Até ao dia em que se descobriram, há meia dúzia de anos, mesmo em frente ao Triângulo de Quionga, as enormes jazidas de gás.

Em frente ao Tanganica, entre 1890 e 1963, com os seus sultões, Zanzibar foi um protectorado britânico, excepto durante os quase quatro anos entre Novembro de 1914 e Setembro de 1918, quando esteve ocupada pelos otomanos, aliados aos alemães e adversários dos Aliados.

Zanzibar obteve a independência dos britânicos em 1963 e tornou-se numa monarquia constitucional, mas o sultão foi deposto logo de seguida numa revolução e o país uniu-se ao vizinho Tanganica em 1964 para, sob a égide do Professor Julius Nyerere, formar a actual Tanzânia. No entanto, Zanzibar ainda hoje mantém alguma autonomia: elege o seu próprio presidente, que funciona como chefe do governo da porção insular e uma assembleia denominada “Conselho Revolucionário”.

A Sul, Moçambique seguiu o seu caminho, de colónia para estado soberano. E , passados todos estes anos, aparte o pacto entre alguns Macondes e a elite sulista da Frelimo, para forçar a saída dos portugueses nos anos 60, a tal linha imaginária rebelde e islâmica de que falei em cima ainda está lá.

Intacta.

Que os locais agoram usem armas ligeiras, granadas, bazookas e mais o que conseguem arranjar por lá, e slogans de guerra islâmicos importados de outros teatros de guerra, e combatam o estado moçambicano em vez do português, é apenas sinal dos tempos.

Cabe aos moçambicanos de hoje decidirem se de facto aquilo e aquela gente lá em cima afinal faz ou não parte de Moçambique e tomarem as medidas decorrentes. Que poderão ter que passar por mais uma guerra civil, mais senão não menos dolorosa que a anterior.

Ou por um esforço de integração daquela região esquecida no todo da nação moçambicana, o que se vislumbra difícil dado Moçambique ser hoje perto de um estado falhado. E laico, o que no mínimo dificulta acomodar formas de islamismo digamos que mais fundamentalistas.

No fim, seja quem for que ganhe aquilo, ficará com um novo país. Ou dois.

E com o gás todo.

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