Imagens retocadas.
O Dicca/Estúdio 222 foram construídos no mesmo terreno onde duante décadas esteve implantado o Teatro Varietá, que foi demolida cerca de 1967.
Imagens retocadas.
O Dicca/Estúdio 222 foram construídos no mesmo terreno onde duante décadas esteve implantado o Teatro Varietá, que foi demolida cerca de 1967.
Imagens retocadas.
Primeiro, mesmo ali ao lado da Praça Mouzinho de Albuquerque (depois 7 de Março e hoje 25 de Junho), em 1910, junto à praia a partir da qual se fizeram os enormes aterros iniciais para se criar o porto da Cidade, dois italianos, Pietro Buffa Buccellatto e Angelo Brussoni, edificaram um ringue de patinagem, inaugurado em 16 de Julho de 1910. Depois de arder o telhado, no mesmo local construiram logo de seguida um dos primeiros teatros de ópera em África, o Varietá, inaugurado em 5 de Outubro de 1912, data do segundo aniversário do golpe militar que derrubou a monarquia portuguesa. Tinha 1803 lugares. O teatro durou 56 anos, até princípios de 1967, quando foi demolido.
Conforme previamente anunciado na altura, em parte do terreno onde outrora estava o Varietá, a empresa F. Dicca (fundada pelo empresário Albanês, Filipe Dicca, uma referência na Cidade) mandou edificar novos dois espaços de espectáculos, o Cinema Dicca e, ao lado, o Estúdio 222, uma sala mais pequena (o nome diz o número de lugares sentados). No lugar onde outrora ficava a soberba fachada do Varietá, virada para a Rua Araújo, sobrou um espaço que suponho fosse para fazer mais um prédio.
Há alguma ironia no facto que, enquanto que o Varietá ficava na Rua Araújo, o Dicca e o Estúdio 222 ficavam na…Travessa do Varietá. Designação que, estranho, se manteve até hoje, e que quase ninguém na Cidade sabe o que significa.
Mas entretanto veio o golpe de Estado do Otelo e a Libertação de Nós Todos. A breve trecho, em Lourenço Marques, tudo foi mais ou menos confiscado ou “abandonado” e quase todos os cinéfilos literalmene mudaram de país. Ali ficou um parque de estacionamento abandonado e as salas foram sumariamente adjudicadas ao novo Instituto Nacional do Cinema, que as usou enquanto elas funcionaram. O que não durou muito.
Mas durou o suficiente para, obedecendo ao ímpeto de mudar o nome a tudo o que recordasse os tempos ímpios dos portugueses, apeassem o nome do Senhor Dicca da sala maior e chamarem-lhe o mais africano e revolucionário nome de Matchedge, o nome dum buraco qualquer perdido no meio de Niassa, onde os membros da Frente de Libertação realizaram o seu Segundo Concílio em Julho de 1968 – ou seja, por coincidência, enquanto a Frelimo reunia no mato, em Lourenço Marques inaugurava-se o Dicca – ali lavando muita roupa suja como era costume mas reelegendo o líder fundacional, Eduardo Mondlane, que, apesar de ser “muito impopular com muitos militantes, tanto na guerrilla como fora dela“, surpreendentemente, duraria mais seis meses no cargo.
A seguir veio a guerra de Samora para libertar Moçambique de todos os reaccionários, colonialistas, vigaristas, vagabundos, ladrões, putas, chiconhocas e preguiçosos, entregar a Rodésia ao Sr. Mugabe e ainda libertar a África do Sul dos brancos. Em 1977, começou oficialmente o comunismo, seguido pela Época do Repolho e do Carapau e pela Guerra Civil, que essencialmente começou porque os rodesianos e depois os sul-africanos tinham alguns diferendos menores em relação à forma como o novo regime parecia encarar as suas relações bilaterais.
Pelo meio, claro, não havia dinheiro nem negócios nem comida e muito pouca arte na agora ex-Lourenço Marques. Como quase toda a Cidade, o Dicca – perdão, o Matchedge – minguava.
Eis que surge, no início dos anos 90, jovem um empresário/artista/político local que queria ter a iniciativa de criar a sua própria companhia de teatro: Carlos Gilberto Mendes.
Encantador como um domador de serpentes e muito bem relacionado, Mendes foi ter então com o Instituto do Cinema e pediu um espaço para a sua nova companhia. Generoso, o Instituto deu-lhe três opções, em que, do que depreendi, a menos péssima era o antigo Dicca e o seu apêndice, o (ainda) Estúdio 222.
Numa entrevista, Mendes descreve o que aquilo era no princípio dos anos 90: “estava completamente partido, sem cadeiras, luz e vidros nas janelas. Era um sítio abandonado e um armazém de produtos roubados do Porto de Maputo. No local vendia-se clandestinamente arroz, açúcar e feijão. Na calada da noite, os guardas cediam a sala, a título de aluguer, para a prática de prostituição. Isto estava tudo cheio de preservativos usados. A zona era frequentada por muitos marginais, e à noite, com tudo escuro, metia medo vir ao teatro.” Com umas cadeiras que trouxe de casa e iluminação improvisada, a 2 de Setembro de 1992, a Companhia de Teatro Gungu encenou a sua primeira peça de teatro no palco do agora já velho Dicca.
A Companhia ainda existe e opera a partir do velho Dicca, recentemente rebaptizado mais uma vez. Não sei se com a Pandemia aquilo se está a aguentar. Em vez de Matchedge, agora tem o nome do dono – Teatro Gilberto Mendes. E, depreendo, quer a companhia, quer o imóvel na Travessa do Varietá, meio quarteirão da Baixa, pertencem a Carlos Gilberto – pessoalmente. Ou seja, bom para ele um dia vender aquilo tudo por uns milhões de dólares, para mais uma vez ir tudo abaixo e ali se fazer mais um prédio (se o Desportivo pôde vender o seu campo de futebol, tudo é possível). O que não falta na cidade é teatros fantasmaglóricos fechados e a apodrecer. De momento, Carlos Gilberto, com 55 anos e que em jovem terá sido campeão de natação de Moçambique, e que foi presidente da Federação deste desporto entre 2010 e 2014, é o Secretário de Estado dos Desportos do actual governo.
No fim, com sorte, um dia, ficará aquele nome estranho na pequena Travessa, a recordar à Cidade um pouco do seu passado.
Que teve.
Imagem de F Pinho, retocada.