THE DELAGOA BAY WORLD

20/07/2023

OS DENTES DE MARFIM DE JORGE BRUM DO CANTO

Imagens retocadas.

Nas minhas pesquisas, descobri há uns dias dois dentes de marfim de Moçambique, trabalhados, para licitação, num sítio electrónico de leilões, com a nota indicando que haviam sido oferecidos em Moçambique a Jorge Brum do Canto, um vagamente conhecido cineasta português, que, entre outros conseguimentos, filmou em Moçambique, num tom épico-cómico-colonial, a obra “Chaimite” (1953), relatando todo aquele episódio do Mouzinho no final do Século XIX.

Dente 1.
Dente 2.

A informação dos dois dentes de marfim vinha com dados sobre o seu tamanho e peso e explicava que Jorge, o seu proprietário durante décadas, tinha falecido em 1994. Portanto, fizeram parte da herança despachada quiçá por uns sortudos sobrinhos primos, pois o Jorge nunca casou e (que se saiba) não teve filhos.

A proveniência dos marfins não é assunto dispiciente pois hoje em dia que fôr apanhado a vender marfim proveniente da caça ilegal vai dentro. Mas o marfim do tempo da Maria Cachucha está isento destas minudências jurídicas.

Cartaz do Chaimite, duas horas e meia, rodado em 1953 e que a RTP descreve assim: “em 1894 os landins atacam Lourenço Marques mas são repelidos. No entanto muitos colonos fogem para a cidade, entre eles está Maria que encontra abrigo no café de Daniel, que se apaixona pela jovem sem saber que esta está comprometida com João Macário. Pouco depois começam a chegar as primeiras tropas que se envolvem em várias batalhas. Entretanto chega Mouzinho de Albuquerque que vem acompanhado por João Macário. As batalhas sucedem-se até que, em Chaimite, Mouzinho consegue capturar Gungunhana. Por sua vez Maria aceita casar com Daniel. A presença militar portuguesa confirma-se quando Mouzinho consegue derrotar Maguiguana, o principal chefe de guerra de Gungunhana.” Eu vi o filme uma vez e só me lembro da Maria a repetir, divertida, e à portuguesa, “kanimambo”. Enfim.

Nas entrelinhas, a insuspeita Wikipédia descreve Jorge Brum do Canto como um artiste multifacetado, filho único da mamã e de Salvador (na verdade ele tinha uma irmã, a Lelé), um ilustre açoriano, que parece ter tido berço de ouro que aparentemente lhe durou a vida toda.

Mas -para mim- a surpresa. Quem era a sua mamã? Berta Rosa Limpo (com um “h” no Berta” para alertar para as origens aristocráticas) rainha indisputada da culinária portuguesa durante décadas e cuja obra-prima é o livro de Pantagruel, que eu li interessadamente durante a adolescência moçambicana (culinária era uma paixão secreta minha) pois a Mãe Melo tinha uma cópia em casa.

Com a Descolonização, não sei onde o livro foi parar.

Bertha, que na década de 30 passou dois meses na Itália, onde foi cantar profissionalmente, teve a ideia do livro, que primeiro editou em 1946.

O Livro de Pantagruel, manual obrigatório das donas de casa portuguesas durante décadas (as que viviam fechadas na cozinha). Mais espessa que a Bíblia, a maior parte das receitas eram o que hoje poderá ser designado como um atentado à saúde. Mas era culinária vintage portuguesa e internacional.

E onde nasceu a nossa Bertha? em Quelimane, Moçambique. Mas cedo iria para os Algarves, onde cresceu.

Bertha, que morreu em 1981, ainda a tempo de ver a sua veneranda Quelimane natal a ser entregue sem grande cerimónia aos novos senhores da Frelimo, era uma celebridade de direito próprio, numa altura em que só havia jornais, revistas, rádio e um pouco de televisão. Outras vieram, como Maria de Lurdes Modesto, mas Bertha foi – e permanece – a Original.

Para além de que foi uma empresária e mulher de armas, numa altura em que as mulheres em Portugal se distinguiam por levar porrada dos maridos, ficarem fechadas em casa, não se poderem divorciar e precisarem de autorização conjugal para viajarem até ao estrangeiro.

A grande Bertha com o filho Jorge.
Um artigo numa revista cor de rosa portuguesa.

Tudo isto porque vi dois dentes de elefante de Moçambique à venda num leilão electrónico.

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