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29/10/2017

CARLOS QUEIROZ: UMA ENTREVISTA, 2015

Filed under: Carlos Queiroz -Treinador de Futebol — ABM @ 11:26

Parte de uma entrevista concedida a Tiago Carrasco para a revista Sábado a 3 de Setembro de 2015.

Carlos Queiroz é treinador de futebol. Nasceu e cresceu em Moçambique.

Carlos Queiroz em Moçambique, anos 70.

 

Como nasceu a sua paixão pelo futebol?

Em Moçambique, lembro-me de ouvir com o meu pai os relatos do Artur Agostinho na Emissora Nacional. Sempre que gritava “remata”, havia uma interferência e ficávamos sem saber se tinha sido golo ou não. O nosso mundo girava entre a obrigação de ir à escola – e só ia porque os meus pais me forçavam -, e o futebol. Não havia mais nada para fazer. Não havia TV, pouco cinema, uns bailes mal organizados. Jogávamos de manhã, à tarde e à noite. Os que tiveram oportunidades encontraram um espaço para vir jogar para Portugal, outros, como eu, que era guarda-redes, ficaram pelo caminho. Mas não nos queixamos. Tivemos uma riqueza de espaços, de tempo e de afectos que não tem comparação. Eu nasci livre. Com 8, 9 anos, viajava para a praia sozinho, a uns 200 km de distância. Mas às vezes a liberdade também nos trama….

Porquê?

O meu único irmão, Rogério, com 14 anos, morreu num acidente de automóvel com mais três miúdos dentro do carro. Ele ia a conduzir. A esta distância, não é compreensível que quatro rapazes de 14 anos vão de automóvel para a praia. Mas, naquele tempo, com 12 anos já pegávamos nos volantes dos tractores nas machambas.

Como viveu aquele período da guerra pela independência de Moçambique?

Até aos 12 anos não saí de Nampula. Pensava que o mundo era só aquilo e Portugal era uma visão distante. A primeira vez que viajei foi quando fui operado em Joanesburgo e um familiar me levou de carro. Naquele tempo, era uma grande aventura. Eu vivia nas machambas e a minha vida sempre foi ligada aos negros. Jogava no Ferroviário, uma equipa em que a grande maioria era negra. Até aos meus 17 anos, havia uma sociedade de classes, em que a classe alta era predominantemente branca e a baixa era negra. Mas não havia conflitualidade. Na escola, podia haver segregação social, mas não racial ou religiosa. Lembro-me de, por exemplo, não me deixarem entrar no clube de ténis de Nacala, não por ser negro, mas por o meu pai não ser suficientemente rico para ser sócio.

Em 1975, viajou para Portugal. Como foi trocar essa vida livre por um regresso a um país que não conhecia?

Veja bem o que os nossos políticos fizeram. Chegaram ali, entre miúdos, velhos, trabalhadores e ignorantes e disseram: agora têm um mês para optar se querem ser portugueses ou moçambicanos. A minha mãe era nascida em Moçambique e o meu pai em Portugal. Ia escolher o quê? Mas a verdade é que os nossos revolucionários, o Mário Soares e tal, me obrigaram a fazer esta escolha, como se tivesse de dizer se gostava mais da minha mãe ou do meu pai. Quem lhes deu esse direito? Deus? Porque se hoje até os gays têm direito a casar, porque é que determinadas pessoas se acham no direito de me dizer que eu não sou moçambicano? Eu sou um africano de cor branca.

 

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