Um sítio de leilões pela internet em Portugal recentemente leiloou as duas fotografias que se seguem. Chamou-me a atenção a breve referência, feita nas anotações, a Moçambique.
No último quartel do Século XIX, a Cherim fazia parte, juntamente com a Maravalt, da chamada Esquadrilha do Zambeze, encarregada de fazer algum policiamento português naquele rio e promover o que se chamavam “acções de soberania”, sendo que a soberania portuguesa, quer sobre a navegação do rio, quer sobre os territórios por onde passava, não estava mínimamente assegurada, nem era ainda reconhecida internacionalmente (para ser mais específico: reconhecida pelas restantes potências europeias com interesses semelhantes, de que destacava o Reino Unido, desde que o Dr. Livingstone publicara o seu livro essencialmente a dizer que aquilo era bom era para o Império Britânico).
Ou seja, quando o punhado de portugueses no Zambeze não estavam aos tiros com os nativos, estavam aos tiros com os britânicos.
A Cherim foi, juntamente com a Cuama, adquirida em 1889 por Portugal na Inglaterra para servir a Real Marinha de Guerra Portuguesa nos rios de Moçambique e ambas serviram naquele território entre 1889 e 1903. Trata-se de um navio de uma roda propulsora movida a vapor, que deslocava 34 toneladas. Montava dois canhões-revólveres e duas metralhadoras.
Um breve e interessante texto de Francisco Gomes de Amorim, referente a João Azevedo Coutinho, uma das figuras incontornáveis nos anais da Marinha portuguesa e instrumental na formação do Moçambique colonial, refere assim o início da saga do então jovem João Coutinho no Norte do que é hoje aquele país – mencionando a Cherim:
Ainda não era oficial e já andava pela África, fazendo levantamentos no rio Muíte, defronte da ilha de Moçambique. Comandou, como guarda-marinha, naquela colónia, os iates de vela “Luzio” e “Tungue”, e depois as canhoneiras “Maravalt e “Cherim”, o vapor “Auxiliar”, e mais tarde a “Liberal” e o transporte “Salvador Correia”.
Em 1885 combateu o régulo Sangage, que avassalou. Contava, então, vinte anos. Continuou a sua acção no Moguinquale e no Infusse.
Comandou a “Cherim” quando Serpa Pinto chegou à África com a sua missão encarregada de operar pelo lado do Zambeze, Chire e Ruo, nas vésperas do ultimato. O fim da expedição consistia em manter o domínio português naquelas regiões onde os ingleses iam captando alguns régulos e entre eles o de Macololos.
Em 1889 foi encarregado de reduzir aqueles povos à obediência, em Chilomo, onde o gentio se entrincheirara. A tripulação da “Cherim” compunha-se de dez brancos e trinta e quatro negros, que chegaram para vencer os rebeldes. O moço comandante viu o seu chapéu varado pelas balas. Admirados pela vitória, os indígenas espalharam a sua fama e passou a ser conhecido por Musungo Icuro ou M’Pezene. Tomou a seguir as terras de Massea e Katunga; aprisionando o filho do soba e logo o régulo Gambi, estendeu o domínio português do Ruo ao Milange.
Portugal celebrou as suas vitórias e o nome do bravo tornou-se ilustre. Comandara vinte acções militares. O consul inglês Johnston, declarou que os Macololos estavam sob a protecção britânica e pretendeu impedir o avanço dos expedicionários, o que não conseguiu. Nasceu desta questão o ultimato [de 11 de Janeiro de 1890]. O seu nome ressoou mais intensamente e o Parlamento proclamou-o Benemérito da Pátria. Aos 24 anos de idade.
Coutinho viria a desempenhar um papel crucial na imposição da Pax Lusitana na nascente colónia da África Oriental Portuguesa, pelo qual seria celebrado no seu país, intervindo contra os Namarrais, o Reino do Barué e noutros palcos, eventualmente sendo nomeado Governador-Geral, cargo que exerceu entre 1905-1906. Monárquico fiel ao seu Rei, a I República maltratou-o, forçando-o a uma longa travessia do deserto, que durou quase até à sua morte, em 1944. A sua imagem ilustrou as notas de cinquenta escudos em Moçambique entre 1970 e…..meados de 1980, quando a Frelimo introduziu o Metical e retirou o Escudo da circulação.
Quanto ao nome da canhoeira, a explicação é dada na página 106 de um livro de 1929 escrito por Sir Harry Johnston, um protagonista britânico da corrida a África na segunda metade do Século XIX:
Cherim, é, então, o nome de um rio, tributário do Zambeze. O nome é um aportuguesamento de um termo usado localmente, significando “margem alta”. Ao rio os britânicos chamavam Shire e esteve na altura, no centro de um grande conflito diplomático entre Portugal e o Reino Unido.