THE DELAGOA BAY WORLD

30/04/2024

OS ARTIFACTOS NA SÉ CATEDRAL DE LOURENÇO MARQUES

Imagens retocadas.

Parte do interior da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da capital de Moçambique (e de Portugal). Por detrás do altar-mor, está sepultado D. Teodósio Clemente de Gouveia, na altura Cardeal e Arcebispo de Lourenço Marques.
Artigo detalhando as obras de arte presentes na Sé Catedral, inaugurada em 14 de Agosto de 1944 (Dia da Assunção de Nossa Senhora, penso que ainda feriado nacional em Portugal), em plena II Guerra Mundial. O percurso, por exemplo, dos vitrais da ábside e das janelas posteriores, feitos na Holanda numa Europa ocupada pelos Nazis e trazida de barco para Lourenço Marques, foi quase alucinante.
A Sé Catedral não foi a primeira igreja em Lourenço Marques. A primeira foi a também chamada Igreja de Nossa Senhora da Conceição, que se pode ver num postal de AW Bayly, também chamada Igreja Paroquial, edificada em meados da década de 1880 (mais ou menos a mesma altura em que foi edificada a Mesquita da Baixa) e que existiu onde hoje está a monumental sede do Rádio Clube de Moçambique (aka Rádio Moçambique). Foi demolida enquanto a Sé Catedral estava a ser construída. Gerações de habitantes da Cidade foram baptizados, casados e homenageados na morte nesse local, sendo os seus registos transferidos para a nova estrutura.

08/12/2023

O FERIADO DA IMACULADA CONCEIÇÃO EM PORTUGAL EM 8 DE DEZEMBRO

Imagem retocada.

A cúpula da Igreja de Santo António da Polana em Lourenço Marques, iluminada pelo sol, onde, solenemente, eu fiz a Primeira (e última) Comunhão da Igreja Católica na manhã de Domingo, dia 8 de Dezembro de 1968, Feriado da Imaculada Conceição, Padroeira de Portugal e de Lourenço Marques. A Sé Catedral de Lourenço Marques foi e está consagrada a Nossa Senhora da Conceição. O presídio de Lourenço Marques, que deu origem à capital de Moçambique, depois “fortaleza”, tinha o nome formal de “Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição” e a primeira igreja católica construída em Lourenço Marques (no local onde hoje está a sede do antigo Rádio Clube de Moçambique, demolida na década de 1930) tinha o nome de “Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Conceição”.

Hoje é feriado nacional em Portugal, celebrando a chamada Imaculada Conceição. O que é e de onde veio esta celebração nacional?

Segundo um texto da Câmara Municipal de Penaguião que consultei (e editei), Nossa Senhora da Conceição foi a Mãe de Jesus Cristo:

O dia invoca a vida e a virtude de Virgem Maria, mãe de Jesus, concebida sem mácula, ou seja, sem marca do pecado original, o que recebeu o estatuto de dogma católico pelo Papa Pio IX no dia 8 de dezembro de 1854 (ou seja, passa a ser considerado assim pela Igreja e não se pode questionar). Assim, tem origem a celebração dessa comemoração, que é uma data de grande significado para a Igreja Católica.

A imaculada conceição é um dos chamados quatro dogmas marianos. Os outros três são que ela é a Mãe de Deus, a Perpétua Virgindade (pois) e a Assunção.

Antes de ter sido considerado um dogma, a celebração da data pelos Católicos já havia sido decretada em 1476 pelo Papa Sisto IV.

Em 25 de março de 1646, cinco anos e quatro meses depois da chamada Restauração da Independência (outro feriado nacional português, celebrado a 1 de Dezembro) e sabe-se lá porquê, o rei D. João IV organizou uma cerimónia solene, na solarenta e alentejana Vila Viçosa, para agradecer a Nossa Senhora da Conceição pela Restauração da Independência de Portugal em relação à Espanha. O rei foi até a igreja de Nossa Senhora da Conceição na Vila, declarando-a padroeira e rainha de Portugal e anunciando que, desde esse dia (e até ao fim da dinastia dos Bragança em 1910), mais nenhum rei português usaria a coroa real na cabeça, privilégio que, diziam, estaria disponível apenas para a Nossa Senhora Imaculada da Conceição.

Importa referir que durante séculos, o Dia da Mãe em Portugal era comemorado no dia 8 de dezembro, tendo sido mudado para maio há relativamente poucos anos, por ser esse considerado o mês de Nossa Senhora. Quando eu era miúdo em Lourenço Marques, ainda assinalei o Dia da Mãe a 8 de Dezembro, primeiro comprando uns postais alusivos na lojinha de artigos religiosos da Igreja de Santo António da Polana, que ficava ao lado do monumento. Depois fiquei esperto e passei a guardar o dinheiro para ir ao cinema no Scala no domingo e fazia uns cartões desenhados à mão usando lápis de cor, que a Mãe Melo muito apreciava, apesar de serem digamos que toscos.

Mas isto dos feriados nacionais portugueses tem o que se lhe diga.

Originalmente, não eram “feriados” como são considerados hoje. Por exemplo, o feriado de 1 de Dezembro era usado para a celebração de solenes missas, chamadas Te Deums. Só em meados do Século XIX é que começaram a ter um carácter mais histórico e laico.

E, no caso da chamada monarquia constitucional (1834-1910) os dias em que os reis nasceram, casaram e morreram eram feriados nacionais. E eles eram mais do que muitos.

Curiosamente, nessa altura, a data de 8 de Dezembro não era um feriado público, era uma data assinalada privadamente apenas pela Família Real portuguesa.

Com o golpe de Estado que aboliu a monarquia portuguesa, em 5 de outubro de 1910, a lista de feriados foi completamente alterada pelos radicais republicanos, ferozmente anti-clericais. Apenas uma semana depois do golpe, um decreto aboliu todos os dias santificados e estabeleceu apenas cinco feriados nacionais – laicos, claro – sendo eles o 1 de janeiro, 31 de janeiro, 5 de outubro, 1 de dezembro e 25 de dezembro. O 1 de janeiro passou a ser observado como o Dia da Fraternidade Universal em vez da Circuncisão do Senhor, o 25 de dezembro passou a ser o Dia da Família em vez do Natal (como aconteceu em Moçambique depois da instauração do comunismo da Frelimo). O 31 de janeiro era em homenagem à revolta republicana falhada de 31 de janeiro de 1891 no Porto, o 5 de outubro aos Heróis da República e o 1 de dezembro à Autonomia da Pátria Portuguesa.

Dois anos depois, adicionaram um feriado a 3 de Maio, evocando a descoberta do Brasil.

Só em 1929, já na Ditadura que antecedeu o Estado Novo, é que o dia 10 de Junho, então feriado municipal em Lisboa, evocando o poeta Luis de Camões (que terá falecido nesta data em 1579 ou 1580, parece que não se sabe), foi declarado feriado, chamada simplesmente “Festa Nacional”.

Salazar, que era católico e associava a nacionalidade ao catolicismo (um truismo) manteria a lista dos feriados nacionais assim até 1948, ano em que se passou a celebrar a data de 8 de dezembro, então chamado Dia da Consagração de Portugal à Imaculada Conceição.

Em 1952 foi publicada uma reforma abrangente do sistema de feriados português: dois feriados civis -31 de janeiro e 3 de maio — e um religioso – Quinta-Feira da Ascensão – foram extintos e em vez disso foram criados 3 feriados religiosos — Corpo de Deus, Assunção de Nossa Senhora (15 de agosto) e Todos-os-Santos (1 de novembro). Além disso, o feriado da Festa Nacional (10 de junho) passou a ser o Dia de Portugal (para além da Festa Nacional) ao qual Salazar, no decorrer da inauguração do Estádio Nacional do Jamor, em 10 de Junho de 1944 tinha acrescentado o epíteto de “dia da “Raça” e o 5 de outubro passou a estar consagrado à Implantação da República (e não aos Heróis da República). E os dias 1 de janeiro e 25 de dezembro voltaram oficialmente a ser feriados religiosos (Circuncisão e Natal, respectivamente). O feriado de 8 de dezembro também passou a ser chamado apenas o Dia da Imaculada Conceição.

Com o derrube do regime em 1974, adicionou-se o 1 de Maio, depois o 25 de Abril, a Terça-Feira de Carnaval, a Sexta-Feira Santa e um feriado da localidade. O 10 de junho passou a ser chamado como Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. E em 2003 o Domingo de Páscoa passou a ser feriado obrigatório (ou seja, quem trabalhar nesse dia, recebe mais 50 por cento do salário).

Em 2013, na sequência de uma – mais uma – falência das contas nacionais pelo PS, desta vez o famoso episódio do José Sócrates, o governo de Pedro Passos Coelho, sustentado pelo PSD e o CDS, para além de aumentar os impostos expressivamente e cortar nas despesas, eliminou “temporariamente” 4 feriados – que dois anos depois a Geringonça de António Costa (sustenada por uma maioria parlamentar composta pelo PS, comunas, Bloco da Esquerda e Partido dos Animais e da Natureza) alegremente restituiu. Eles eram o Corpo de Deus, Todos os Santos, 5 de Outubro e 1 de Dezembro.

Enfim. Com o milhão e meio de imigrantes que se prevê virão viver para Portugal nos próximos anos para complementar os que daqui se piram para melhores paragens – a actual tendência é virem brasileiros, indianos, paquistaneses, angolanos, nepaleses, chineses e afins (ou seja protestantes, islâmicos sunnis, budistas, judeus, sikhs, ismaelitas, etc, – até já há em Lisboa uma “catedral” da Cientologia ) quero ver onde é que vão parar estes feriados todos. Para já, andam muitos a comentar a nova simbologia da bandeira portuguesa, recentemente aprovada pelo governo do demissionário António Costa, cujo desenho foi especificamente concebido para ser mais “laico” e “inclusivo”. Pois claro.

08/12/2018

NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO E LOURENÇO MARQUES

Não estou dentro dos mistérios associados a todos os dogmas e raciocínios da Igreja Católica e Apostólica Romana, especialmente no que concerne as suas figuras veneradas, como é o caso de Nossa Senhora da Conceição.

Mas, indubitavelmente, há uma relação especial entre esta figura da Igreja Católica e Portugal.

E com Lourenço Marques, desde o momento da sua fundação, no final do Século XVIII.

Lá iremos.

Segundo a Bíblia, Maria, também chamada Nossa Senhora da Conceição, era a Mãe de Jesus Cristo e mulher de José, um carpinteiro. O termo “conceição” deriva dela ter concebido aquele que, segundo a crença cristã, era filho de Deus.

Como tal, Maria, apesar de ser mulher, Nossa Senhora da Conceição, sempre ocupou um lugar de algum destaque na narrativa cristã, eventualmente tornada na única religião permitida no império romano pelo imperador romano Constantino (reinou entre 306 e 327), e que o sobreviveu, até hoje.

Entretanto passaram 1500 anos.

Diz a conhecida astrologista e intérpetre de Tarot Maria Helena no seu blog que “a celebração de Nossa Senhora da Conceição honra a conceção de Maria, que foi concebida sem haver pecado. A palavra “imaculada” deriva do latim “sem mácula” ou seja, sem mancha. No dia 8 de Dezembro de 1854, o Papa Pio IX [papa entre 1846 e 1878, o mais longo mandato papal e um dos mais controversos na história do catolicismo] definiu e proclamou, através da bula “Ineffabilis Deus”, a concepção imaculada de Maria como um dogma religioso e desde então esta data é celebrada pela Igreja Católica e por todos os fiéis. O dia 8 de Dezembro antecede em nove meses a data da natividade de Maria, que é o dia 8 de Setembro, e por essa razão esta data ficou definida pela Igreja Católica como a data em que Maria foi concebida.

Em bom português, o relato bíblico original sugeria vagamente que Maria concebeu Jesus Cristo sem ter tido relações sexuais (o perpétuo “pecado” católico), contribuindo para o seu estatuto como filho de Deus. Pio IX proclamou-o como facto inquestionável.

Muito antes do pronúncio de Pio IX, no entanto, já um monarca português, João IV,  tomara uma posição semelhante em relação a esta figura do catolicismo e fizera algo relativamente insólito. D. João IV era o  Bragança que se chegou à frente em 1640 para se tornar o monarca de Portugal, quando alguns portugueses se revoltaram, com sucesso, contra a Dinastia espanhola dos Felipes, detentora da coroa de Portugal desde 1580. Carminda Neves assim o relata:

Por proposta sua, durante as Cortes reunidas em Lisboa desde 28 de Dezembro de 1645 até 16 de Março de 1646, afirmando o soberano «que a Virgem Maria foi concebida sem pecado original» e comprometendo-se a doar em seu nome, em nome de seu filho e dos seus sucessores à Santa Casa da Conceição, em Vila Viçosa, «cinquenta cruzados de oiro em cada ano», como sinal de tributo e vassalagem, a dar continuidade à devoção de D. Afonso Henriques, que tomara a Senhora por advogada pessoal e de seus sucessores. O acto da proclamação de Nossa Senhora da Conceição como Padroeira de Portugal, efectuado com a maior solenidade pelo monarca a 25 de Março desse ano (1646), alargou-se a todo o País, com o povo, à noite, a entoar cânticos de júbilo pelas ruas, para celebrar a Conceição imaculada da Virgem, ou, mais precisamente, a Maternidade Divina de Maria. Assim se tornou Nossa Senhora a verdadeira Soberana de Portugal, não voltando por isso, desde aí, nenhum dos nossos reis a ostentar a coroa, direito que passou a pertencer apenas à Excelsa Rainha, Mãe de Deus. Em 1648 D. João IV manda cunhar moedas de ouro e de prata, tendo numa das faces a imagem da Imaculada Conceição com a legenda Tutelaris Regni – Padroeira do Reino. Em 1654 ordena que sejam postas em todas as portas e entradas das cidades, vilas e lugares do reino pedras lavradas com uma inscrição alusiva à Imaculada Conceição (lápides essas ainda hoje existentes em certos locais). Outros reis seus sucessores continuaram a tradição deste culto de homenagem a Nossa Senhora, caso de D. João V, em 1717, que recomenda a todas as igrejas a celebração anual com pompa e solenidade da Festa da Imaculada Conceição, enquanto D. João VI emite um decreto criando a Ordem Militar de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa e a Cabeça da Ordem (lugar principal) na Sua Real Capela.

Ainda hoje, o dia 8 de Dezembro é um feriado nacional em Portugal e, se me recordo, era também o Dia da Mãe na minha infância.

Acontece que, no início do Século XVI, estando os portugueses na posse de uma minúscula língua de terra que era a ilha de Moçambique, situada estrategicamente na costa oriental africana e na rota para o Oriente, que trouxe à Europa uma mudança civilizacional, ali edificaram gradualmente uma gigantesca fortaleza, cujo padroeiro católico é São Sebastião, evocado nas sete setas cruzadas que adornaram a bandeira provincial durante boa parte do Século XX.

No último quarto do Século XVIII (1782, se me recordo) os poderes lusos de então decidiram criar uma pequena guarnição permanente, estacionada numa imunda e insalubre língua de terra na margem Norte da então Baía do Espírito Santo, num local que não tinha nome conhecido e a que chamavam “Lourenço Marques”. Eufemisticamente, deram à pequena fortificação de lama, pedras e caniço ali erguida a designação de Presídio ou Fortaleza de …. Nossa Senhora da Conceição.

Que, por essa via, se iria tornar na Padroeira da futura cidade.

O Núcleo Museológico da Cidade de Lourenço Marques, construído nos anos 40 a partir das ruínas da Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição, década de 1960. O projecto do Núcleo Museológico foi da autoria de Pancho Guedes. As principais diferenças entre o que se vê e como era são que 1) a versão anterior era um pardieiro improvisado com materiais de terceira qualidade, 2) a inexistência de uma muralha a Sul (o que existia antes é a linha mais clara que se ê na base dessa muralha) e 3) o mar batia nesta parte Sul.

A cidade, sempre ténue, insegura e frágil, ainda levaria mais que cem anos a surgir e mesmo aí só após se manifestar o braço colonial britânico a Sul e os Boers a Oeste, e depois de descobertas as jazigas de diamantes e ouro naquela região e se compreendeu que, no contexto das comunicações de então (barco e caminho de ferro) um porto e uma linha de caminho de ferro a partir dali para o interior seriam investimentos estratégicos.

Lourenço Marques como era fora do núcleo original que é hoje a sua Baixa.

Em 1879, num acto de algum arrojo se se levar em conta a sua localização – no preciso local onde hoje está edificada a antiga sede do Rádio Clube de Moçambique, que na altura era ainda mato cerrado bem fora do perímetro urbano- os citadinos edificaram uma igreja, a primeira de Lourenço Marques, a que deram o nome de Igreja de Nossa Senhora da Conceição.

A futura Igreja de Nossa Senhora da Conceição a ser construída em Lourenço Marques, cerca de 1880.

A igreja foi inaugurada em 1881.

Ali ao lado, num ponto estratégico de visibilidade, construíram os britânicos o seu consulado, que dobrava como residência consular.

A Igreja de Nossa Senhora da Conceição, de costas para o futuro Jardim Vasco da Gama. Ao fundo, o Consulado Britânico, que hoje é a sua embaixada em Maputo.

A então Avenida Dom Manuel, em Lourenço Marques, década de 1890, com a igreja original ao fundo. Onde se encontram os bungallows improvisados, seriam construídos a futura Sé Catedral, a Câmara Municipal e a Praça Mouzinho (hoje Praça Samora). Litografia pintada por mim.

Pouca gente hoje sabe que ao Alto-Maé correspondeu uma Freguesia cujo nome formal era …. Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Alto-Maé.

O estilo desta primeira igreja tem zero a ver com o que quer que seja que se fizesse em Portugal em termos da sua arquitectura. Olhando para as imagens, parecia ser uma igreja episcopal inglesa. Mas ali foram baptizadas, casadas e feitos elogios fúnebres, a gerações de habitantes da Cidade.

O Altar da velha Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Lourenço Marques em 1919, com a estátua representando Nossa Senhora da Conceição Imaculada. Uma rara foto a preto e branco tirada por Louis Hily e colorida por mim. O original desta foto é hoje propriedade do meu caro Paulo Azevedo.

Com o crescimento da Cidade, na segunda década do Século XX, as pessoas começaram a achar que a sua igreja era pequena demais para o número de crentes que a frequentavam. Mas salvo uns bravos mais dedicados, ninguém sonhava em fazer outra – certamente nada da escala e envergadura da que veio a ser inaugurada com enorme pompa e circunstância em Agosto de 1944.

Para uma Lourenço Marques cosmopolita, aberta ao Mundo, eminentemente urbana, relativamente sofisticada ainda que colonial, com igrejas de várias denominações, gentes oriundas de quase todo o mundo, casinos e casas de prostituição legais, uma forte dose laica e com o maior templo maçónico de todo o espaço português, a edificação de uma nova igreja de grande dimensão não era assunto leve.

A história a partir daí é magistralmente contada numa interessantíssima, magnífica e eminentemente legível tese académica (212 páginas, com dezenas de fotos no fim) de Ana Furtado, defendida em 2017 e publicada recentemente. Que choca e delicia pela erudição e abrangência dos assuntos ali abordados.

Segundo a Ana, e resumindo as coisas, a construção da actual Catedral deve-se a todo um contexto de então e, localmente, principalmente a 4 pessoas.

O contexto? António de Oliveira Salazar, um nacionalista convicto e um católico relativamente ferrenho, toma o poder em 1928 e, com uma ajudinha do seu amigo o Padre Cerejeira, na altura nomeado Cardeal em Lisboa, principia a construir o Estado Novo, com uma forte componente religiosa, que ele considerava parte da “fibra da Nação”. Essa obra incluiu a assinatura de vários acordos com a Santa Sé e um investimento considerável nos esforços de implantação e reforço das instituições católicas em todos os territórios que na altura integravam Portugal. Simultaneamente, desencadeia um conjunto de acções com vista a reforçar um sentido de objectivo à sociedade portuguesa, baseada no passado histórico, que se procurou glorificar até ao ponto da exaustão.

É neste contexto que a ideia de se fazer uma nova igreja em Lourenço Marques evolui, com uma crescente atenção e eventualmente, quase apropriação por parte do Estado, para os seus desígnios de glorificação nacional.

As quatro pessoas:

  1. o missionário franciscano e Prelado, D. Rafael da Assunção, que para além de puxar por este projecto, foi a força por detrás da construção das igrejas da Missão Franciscana da Beira, de Homoíne e de São José de Lhanguene.
  2. o Arquitecto António Couto Abreu, que desenhou um projecto de uma igreja (assinado a 20 de Setembro de 1922), considerado algo faraónico e inviável, pois não havia dinheiro e quase tudo que ele previa tinha que ser importado (nota: houve um projecto anterior por Tito Fernandes, mas esse foi logo às urtigas);
  3. o Engº Marcial Freitas e Costa, nos CFM desde 1922, que apresentou o projecto que foi executado, em linhas modernas, simples – e em cimento armado. E que depois foi a sua alma, executando-o.
  4. o lendário Engº Francisco Pinto Teixeira dos Caminhos de Ferro de Moçambique, que, depois de anos e anos de a Câmara Municipal levantar obstáculos ao projecto, ele, que então havia recentemente assumido a presidência da Câmara Municipal de Lourenço Marques, aprovou o projecto de Marcial (os dois conheciam-se muito bem dos CFM) três dias depois de ter sido submetido.

Marcial Freitas e Costa, o criador do projecto da Sé Catedral, no seu gabinete de trabalho nos Caminhos de Ferro em Lourenço Marques, década de 1930. Não recebeu um tusto do trabalho que fez para a sua edificação. Foto reproduzida da tese de Ana Furtado.

Finalmente, a primeira pedra da futura Sé Catedral é lançada e abençoada com pompa no dia 28 de Junho de 1936.

A construção foi sendo feita. Havia o desejo de a inaugurar em 1940 – ano em que o Regime comemoraria estrondosamente a Fundação, a Restauração, a Portugalidade, etc. Mas as obras atrasaram-se porque entretanto chega a II Guerra Mundial e as coisas complicam-se rapidamente. Havia ainda menos dinheiro e ainda faltava fazer muita coisa. Um exemplo que a Ana dá é o dos vitrais da futura igreja, que foram fabricados na Alemanha e que quando estavam encaixotados para serem enviados para Moçambique, foram apanhados num porto holandês justamente quando a Alemanha invadiu aquele país em 1940. Ao mais alto nível da diplomacia, andou-se às voltas com os alemães para encontrarem e entregarem os vitrais a Portugal, o que foi feito.

A futura Sé Catedral em construção, final da década de 1930. Foto do Edgar Marques.

A igreja foi inaugurada no dia 14 de Agosto de 1944, ainda decorria a guerra, mas já se prenunciava a derrota de Hitler e a hegemonia dos EUA e da União Soviética. Portugal manteve a neutralidade, um pouco colada com cuspo mas enfim. As cerimónias foram lideradas pelo Cardeal Cerejeira, que viajou de barco até Lourenço Marques, a primeira (e a única) vez que um cardeal português se deslocou a uma colónia. Por se ter divorciado uns tempos antes, Ana sugere que Marcial Freitas e Costa foi considerado persona non grata na cerimónia inaugural e por isso terá aproveitado uma viagem aos EUA pouco antes (para ver se arranjava ferro para os CFM) para de seguida tirar uma licença graciosa em Portugal, pelo que nesse dia não estava em Lourenço Marques. Outros tempos.

A Sé Catedral na actualidade. Mantém a traça original mas é preciso dinheiro para a sua manutenção.

 

A fachada frontal.

 

Os vitrais, originalmente feitos na Alemanha de Hitler e trazidos de barco para Lourenço Marques, maioritariamente pagos do bolso de Marcial Freitas e Costa. Foram “apanhados” em caixotes num porto da Holanda quando os exércitos de Hitler invadiram aquele país. Em baixo, uma estátua evocativa de Nossa Senhora da Conceição.

 

O enquadramento da Sé Catedral, anos 60, ao lado da Câmara Municipal e do monumento a Mouzinho de Albuquerque. Desde então, saiu Mouzinho e entrou Samora.

Em 1944, velha a Igreja de Nossa Senhora da Conceição foi desconsagrada (passando a sua consagração para a nova Sé Catedral, cujo nome formal ainda é Igreja de Nossa Senhora da Conceição) e a seguir foi demolida. No mesmo local, sete anos depois, foi inaugurado no local o Palácio da Rádio, a então nova sede do Rádio Clube de Moçambique.

O Palácio da Rádio, sede do Rádio Clube de Moçambique, década de 1960, implantado no mesmo local onde, mesmo em frente ao velho edifício que se vê à direita, estava a original Igreja de Nossa Senhora da Conceição.

Marcial Freitas e Costa faleceu precisamente quatro meses depois, em Lourenço Marques. O seu corpo foi posteriormente trasladado para um cemitério em Portugal.

Merece ser recordado neste dia 8 de Dezembro de 2018, 372 anos após a proclamação de D. João IV, 236 anos após a fundação do Presídio de Lourenço Marques, 164 anos após a proclamação do Papa Pio IX, 137 anos após a inauguração da primeira Igreja de Nossa Senhora da Conceição em Lourenço Marques, e 74 anos após a inauguração da Sé Catedral e do seu desaparecimento físico.

 

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