THE DELAGOA BAY WORLD

07/04/2021

O CINEMA DICCA E O ESTÚDIO 222 EM LOURENÇO MARQUES

Imagens retocadas.

Primeiro, mesmo ali ao lado da Praça Mouzinho de Albuquerque (depois 7 de Março e hoje 25 de Junho), em 1910, junto à praia a partir da qual se fizeram os enormes aterros iniciais para se criar o porto da Cidade, dois italianos, Pietro Buffa Buccellatto e Angelo Brussoni, edificaram um ringue de patinagem, inaugurado em 16 de Julho de 1910. Depois de arder o telhado, no mesmo local construiram logo de seguida um dos primeiros teatros de ópera em África, o Varietá, inaugurado em 5 de Outubro de 1912, data do segundo aniversário do golpe militar que derrubou a monarquia portuguesa. Tinha 1803 lugares. O teatro durou 56 anos, até princípios de 1967, quando foi demolido.

O Varietá perto do fim.

Conforme previamente anunciado na altura, em parte do terreno onde outrora estava o Varietá, a empresa F. Dicca (fundada pelo empresário Albanês, Filipe Dicca, uma referência na Cidade) mandou edificar novos dois espaços de espectáculos, o Cinema Dicca e, ao lado, o Estúdio 222, uma sala mais pequena (o nome diz o número de lugares sentados). No lugar onde outrora ficava a soberba fachada do Varietá, virada para a Rua Araújo, sobrou um espaço que suponho fosse para fazer mais um prédio.

A Baixa Velha de Lourenço Marques, 1968. Em cima em azul, o Dicca e o Estúdio 222, quase concluídos.
O Dicca e o Estúdio 222, prestes a serem inaugurados. À direita, o murinho do tal terreno para o tal de prédio que nunca veio, com o aviso da obra do “Prédio Dicca”.
O Dicca já em funcionamento, hiper-moderno e sofisticado.

Há alguma ironia no facto que, enquanto que o Varietá ficava na Rua Araújo, o Dicca e o Estúdio 222 ficavam na…Travessa do Varietá. Designação que, estranho, se manteve até hoje, e que quase ninguém na Cidade sabe o que significa.

Mas entretanto veio o golpe de Estado do Otelo e a Libertação de Nós Todos. A breve trecho, em Lourenço Marques, tudo foi mais ou menos confiscado ou “abandonado” e quase todos os cinéfilos literalmene mudaram de país. Ali ficou um parque de estacionamento abandonado e as salas foram sumariamente adjudicadas ao novo Instituto Nacional do Cinema, que as usou enquanto elas funcionaram. O que não durou muito.

Mas durou o suficiente para, obedecendo ao ímpeto de mudar o nome a tudo o que recordasse os tempos ímpios dos portugueses, apeassem o nome do Senhor Dicca da sala maior e chamarem-lhe o mais africano e revolucionário nome de Matchedge, o nome dum buraco qualquer perdido no meio de Niassa, onde os membros da Frente de Libertação realizaram o seu Segundo Concílio em Julho de 1968 – ou seja, por coincidência, enquanto a Frelimo reunia no mato, em Lourenço Marques inaugurava-se o Dicca – ali lavando muita roupa suja como era costume mas reelegendo o líder fundacional, Eduardo Mondlane, que, apesar de ser “muito impopular com muitos militantes, tanto na guerrilla como fora dela“, surpreendentemente, duraria mais seis meses no cargo.

A seguir veio a guerra de Samora para libertar Moçambique de todos os reaccionários, colonialistas, vigaristas, vagabundos, ladrões, putas, chiconhocas e preguiçosos, entregar a Rodésia ao Sr. Mugabe e ainda libertar a África do Sul dos brancos. Em 1977, começou oficialmente o comunismo, seguido pela Época do Repolho e do Carapau e pela Guerra Civil, que essencialmente começou porque os rodesianos e depois os sul-africanos tinham alguns diferendos menores em relação à forma como o novo regime parecia encarar as suas relações bilaterais.

Pelo meio, claro, não havia dinheiro nem negócios nem comida e muito pouca arte na agora ex-Lourenço Marques. Como quase toda a Cidade, o Dicca – perdão, o Matchedge – minguava.

O Match Edge (como lhe chama o Google) e o Estúdio 222, final dos anos 80. Na altura Maputo não tinha carros, que presumivelmente terão sido todos roubados pelos antigos residentes.

Eis que surge, no início dos anos 90, jovem um empresário/artista/político local que queria ter a iniciativa de criar a sua própria companhia de teatro: Carlos Gilberto Mendes.

Encantador como um domador de serpentes e muito bem relacionado, Mendes foi ter então com o Instituto do Cinema e pediu um espaço para a sua nova companhia. Generoso, o Instituto deu-lhe três opções, em que, do que depreendi, a menos péssima era o antigo Dicca e o seu apêndice, o (ainda) Estúdio 222.

Numa entrevista, Mendes descreve o que aquilo era no princípio dos anos 90: “estava completamente partido, sem cadeiras, luz e vidros nas janelas. Era um sítio abandonado e um armazém de produtos roubados do Porto de Maputo. No local vendia-se clandestinamente arroz, açúcar e feijão. Na calada da noite, os guardas cediam a sala, a título de aluguer, para a prática de prostituição. Isto estava tudo cheio de preservativos usados. A zona era frequentada por muitos marginais, e à noite, com tudo escuro, metia medo vir ao teatro.” Com umas cadeiras que trouxe de casa e iluminação improvisada, a 2 de Setembro de 1992, a Companhia de Teatro Gungu encenou a sua primeira peça de teatro no palco do agora já velho Dicca.

Logotipo da Companhia de Teatro Gungu.

A Companhia ainda existe e opera a partir do velho Dicca, recentemente rebaptizado mais uma vez. Não sei se com a Pandemia aquilo se está a aguentar. Em vez de Matchedge, agora tem o nome do dono – Teatro Gilberto Mendes. E, depreendo, quer a companhia, quer o imóvel na Travessa do Varietá, meio quarteirão da Baixa, pertencem a Carlos Gilberto – pessoalmente. Ou seja, bom para ele um dia vender aquilo tudo por uns milhões de dólares, para mais uma vez ir tudo abaixo e ali se fazer mais um prédio (se o Desportivo pôde vender o seu campo de futebol, tudo é possível). O que não falta na cidade é teatros fantasmaglóricos fechados e a apodrecer. De momento, Carlos Gilberto, com 55 anos e que em jovem terá sido campeão de natação de Moçambique, e que foi presidente da Federação deste desporto entre 2010 e 2014, é o Secretário de Estado dos Desportos do actual governo.

No fim, com sorte, um dia, ficará aquele nome estranho na pequena Travessa, a recordar à Cidade um pouco do seu passado.

Que teve.

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