THE DELAGOA BAY WORLD

27/06/2024

O SEGREDO DE “O SEGREDO DE LOURENÇO MARQUES”, DE EDUARDO PIRES COELHO

Imagens retocadas.

Para alguém que, como eu, mantém este dúbio hobby de cronicar principalmente sobre o que foi e é Moçambique em três blogues temáticos separados (este, The Delagoa Bay Company e The Delagoa Bay Review) a experiência de ler a obra de Eduardo Pires Coelho O Segredo de Lourenço Marques, descrito pela editora como um thriller histórico, a ser oficialmente lançado amanhã em Lisboa numa cerimónia no Museu do Oriente, foi como uma criança ir ao circo pela primeira vez, ver os leões, os palhaços e os trapezistas e acabar o dia com um enorme sorvete numa taça.

Capa de O Segredo de Lourenço Marques.

Em 375 páginas de texto mais ou menos meticulosamente pesquisadas, procurando a aderência aos factos e procedendo a um enquadramento e geográfico rigoroso que percorre mais que um século e vários pontos do planeta, o autor concebe uma história fictícia algo insólita, envolvendo um conjunto de figuras, descortinando gradualmente um enredo em redor de dois conhecidos eventos até hoje tidos como inexplicados: o que aconteceu às reservas de ouro do Transvaal aquando da tomada de Pretória em 1900 pelo exército britânico (durante a segunda guerra Anglo-Boer) e a fuga do Presidente Paul Johannes Kruger para Lourenço Marques; e o igualmente enigmático episódio ocorrido em 1971 com o navio de cabotagem Angoche, (tema que, como se pode ler, em 2012 despachei com duas linhas) alvo de um aparente ataque durante uma viagem na costa moçambicana.

Os dois temas são, e eram bem conhecidos em Moçambique colonial e na vizinha África do Sul. Em tempos o grande Alfredo Pereira de Lima tratou o primeiro tema num livrinho e a minha sogra Suzete, Coca-Cola de gema mas que fez todo o liceu em Belfast, falou-me sobre o tema mais que uma vez. Vivendo na Polana na altura, em 1971 assisti ao Angoche, delapidado, ser rebocado para a Baía e atracado mesmo em frente à FACIM, onde ficou durante anos. Num dia calmo e solarento, era comum pessoas irem em pequenas embarcações até ao navio abandonado, para lá treparem pelas amarras e fazerem piqueniques e nadarem à sua volta, o que também fiz uma vez, dando mergulhos da carcaça flutuante até às águas da Baía. Enfim. Anos mais tarde, uma manhã, certamente depois de alguém ter perfurado o casco, constatou-se que tinha afundado. Ainda deve estar lá. O tema continua a fascinar muitos e o Paulo Oliveira acabou de editar mais um livro (que não li) sobre o assunto, supostamente não ficcionado.

O autor.

Numa entrevista, Eduardo Pires Coelho, que nasceu em Lisboa em 1974, descreve ter lido pela primeira vez sobre o Angoche em 2008 durante um vôo em Moçambique num artigo publicado na revista de bordo das Linhas Aéreas de Moçambique (de facto houve uma altura em que era de longe a melhor publicação em Moçambique, constrastando com a companhia, que, como aconteceria com o Angoche, se viria a afundar inexoravelmente). Tornado escritor e romancista depois de uma aparentemente fulgurante carreira na área financeira, decidiu fazer algo com o tema – esta obra. Que, pelas contas, levou cerca de uma década a congeminar.

Não é a sua primeira obra. Anteriormente, escreveu ficção com base histórica relacionada com a história dos portugueses, tão cheia de implausíveis: O Segredo da Flor do Mar (amplamente invocado nesta obra) e Taprobana.

Para além de alguma pesquisa que considero meticulosa q.b. quanto aos factos, locais e pessoas (no final é listada uma bibliografia que terá sido consultada, incluindo o incontornável HousesofMaputo), a obra beneficia do facto de o autor conhecer relativamente bem os ambientes em que a acção decorre, nalguns casos com requintes de malvadez, como, para além de Lourenço Marques em 1900, o episódio da detenção de um jovem Winston Churchill durante o cerco de Ladysmith e a sua subsequente épica fuga para Lourenço Marques (que verdadeiramente captou a atenção mundial para esta figura e o catapultou para a cena política britânica). Ou a visita ao busto do grande General Joaquim José Machado em Lisboa, merecidamente escapulida dos escombros do rico mas ainda pouco estudado e pouco apreciado legado colonial moçambicano. Ou a visita a Machadodorp (hoje eNtokozweni), sede temporária do governo boer a caminho da fuga para Lourenço Marques e a viagem de Kruger no couraçado holandês De Gelderland para Marselha. E especial e surpreendentemente, a cidade de Cape Town na actualidade, que conheci muito bem. Esses enquadramentos assistem de forma singular na plausibilidade do enredo e o torna tanto mais interessante.

Sendo uma obra de ficção com um enredo bem conseguido, o Leitor tem a oportunidade de se enquadrar no tempo, no espaço e em redor de circunstâncias históricas que ainda hoje são alvo de análise e apaixonada especulação.

Se só por isso, já valeria a pena ser lida.

Site no WordPress.com.