THE DELAGOA BAY WORLD

01/06/2016

ALFREDO PEREIRA DE LIMA E O JARDIM MEMORIAL DE LOUIS TRICHARDT EM MAPUTO

Louis Trichadt, o legendário pioneiro boer, imagem dos arquivos do Parque Nacional Kruger. Está sepultado na Baixa de Maputo desde 1838.

Na sequência nas guerras na Europa no início do Século XIX, opondo principalmente a França e a Grã-Bretanha, esta última tomou a Colónia do Cabo, holandesa desde o início do Século XVII e ponto de paragem estratégico na rota para a Índia, que ocupava a área em redor da actual Cidade do Cabo.

Uns anos mais tarde surgiram atritos graves entre os colonos holandeses-huguenotes (doravante chamados boers) com os novos senhores do Cabo. A partir de 1835, um número elevado de boers iniciou o que eles chamam o “grande trek”, ou grande caminhada, cujo objectivo principal era dirigirem-se para fora da Colónia do Cabo, e estebelecerem-se como comunidades autónomas, independentes da coroa britânica.

Dessas migrações, descritas na cultura boer com muito folclore e épica, quase todas feitas para Norte-Nordeste, directamente apontadas na direcção de Maputo, resultou a eventual fundação de duas repúblicas, o Estado Livre de Orange, com capital em Bloemfontein, e a República Sul-Africana Meridional, ou Transvaal, com capital em Pretória.

As migrações, ou treks, foram várias. O processo foi complicado e durou cerca de vinte anos.

No entanto, um dos primeiros e talvez o “trek” mais importante de todos, foi o liderado pelo quiçá mais carismático dos líderes boers de então, um senhor de origem dinamarquesa chamado Louis Trichardt (os boers escrevem “Trechardt”), que é por muitos considerado o fundador do Transvaal, mais tarde a principal das duas nações boers que foram fundadas cerca de meados do Século XIX. Com ele co-liderava o pioneiro boer Hans van Rensburg.

A longa viagem a pé e de carroças puxadas por bois desde o Cabo até ao que hoje é o Parque Nacional Kruger durou quase dois anos. Aí a expedição separou-se e van Rensburg com um grupo seguiram para a grande baía no Sul de Moçambique enquanto Trichardt e parte da sua comitiva permaneceram numa zona mais alta e interior. Os registos indicam que van Rensburg e a sua comitiva foram mortos num assalto. Uns meses depois, Trichardt seguiu a mesma rota na direcção do mar.

É de salientar que desde os primórdios do projecto nacional boer, o acesso ao mar independente do controlo britânico foi uma autêntica obsessão, a que correspondeu igual determinação, por parte da diplomacia da Grâ-Bretanha, de limitar e controlar esse acesso. Este confronto de propósitos foi determinante para Moçambique e manteve as diplomacias da monarquia portuguesa e do império britânico ocupados durante o meio século que se seguiria.

No total, a viagem de Trichardt até aos arredores da acutal Maputo durou cerca de três anos (sete meses só para o percurso entre o Highveld e a Baía, com inúmeras mortes entre os que o acompanharam).

Mas mesmo assim a aventura acaba mal, por duas razões.

A primeira é que Louis Trichardt e os seus seguidores não só meteram-se pelo mato abaixo na direcção entre Nelspruit (Mbombela agora) e Maputo, zona essa que era quase certamente mortífera pois nem os homens nem os animais resistiam a coisas como a malária que ali era endémica e invariavelmente afectava que por ali passasse. Assim, a maior parte da comitiva morreu de malária e o próprio Trichardt e a mulher estavam doentes quando chegam ao então absolutamente miserando presídio de Lourenço Marques (onde hoje está a chamada Fortaleza de Maputo, que na realidade é um núcleo museológico construído nos anos 1940, mas que na altura era uma espelunca imunda feita com uns paus e matope no que facto era uma pequena ilha, separada do terreno adjacente do que é hoje Maputo por uma depressão onde hoje está mais ou menos situada a Av. 25 de Setembro.

A segunda razão porque a expedição de Trichardt correu mal é que, assim que ali chegou, no dia 13 de Abril de 1838, o chefe português do presídio, que dava pelo título de “governador”, disse-lhe que aqueles territórios pertenciam à Coroa de Portugal e que eles não podiam ficar com aquela região nem podiam ir viver para ali. Como resultado, o “trek” de Louis Trichardt termina com a sua recomendação de que os boers fundem a sua república para lá da zona infestada de malária, que terminava mais ou menos a dez quilómetros a Oeste de onde eventualmente foram definidas as actuais fronteiras entre Moçambique e o Transvaal, já nos finais de 1888, então já a propósito da não menos célebre disputa em redor do contrato com o norte-americano Macmurdo para a construção da linha de caminho de ferro que haveria de, sete anos mais tarde, passar a ligar Lourenço Marques à capital do Transvaal, Pretória.

Doentes com malária, esta parte da história acaba com a morte de Louis Trichardt e da sua mulher, no terceiro trimestre de 1838, em Lourenço Marques.

O que acontece a seguir é que é possivelmente a parte mais interessante deste longo episódio.

Com o tempo, a história do que veio a ser a actual África do Sul evolveu para uma enorme e implacável confrontação entre os boers e o império britânico, que culmina com a Guerra Anglo-Boer de 1899-1902, e mais tarde com um crescente domínio boer da União Sul-Africana, criada em 1910, domínio esse que recrudesce nos anos 20 e 30 do Século XX, com as grandes lideranças de Herzog e de Jan Smuts.

O monumento aos Voortrekkers, os pioneiros boers, em Proclamation Hill, perto de Pretória.

Durante esses anos, os boers olharam de novo para a sua história, na qual Louis Trichardt e a sua expedição adquiriram uma importância mítica e fundacional fulcral, semelhante, para eles, ao simbolismo com que se pretende associar os que combateram com armas pela independência de Moçambique.

No longo baixo-relevo no interior do Monumento aos Voortrekkers, Louis Trichardt em Lourenço Marques, presumo que com o governador do pequeno presídio.

Em 1938, o poder boer em plena ascenção numa aliança pouco fácil os residentes de origem inglesa, com enorme pompa, foi inaugurado nuns campos nos arredores de Pretória, o assombroso Monumento aos Voortrekkers, onde toda essa história e misticismo estão reflectidos – incluindo o episódio seminal do mais celebrado de todos os Voortrekkers – o trek de Louis Trichardt.

De certa forma, Trichardt foi uma espécie de Eduardo Mondlane para os boers, uma peça fundamental da lógica inescapável da justiça da causa da sua independência, especialmente face ao poder britânico.

Poucos anos após a inauguração do gigantesco monumento boer em Pretória, em Lourenço Marques, Alfredo Pereira de Lima, ali nascido e criado e então um jovem arquivista da Câmara Municipal da cidade Lourenço Marques, que detinha um grande fascínio por história, tendo ao longo da sua vida feito um trabalho inestimável, estudou o que havia em redor da história de Trichardt.

E foi Lima quem em 1944, já no final da II Guerra Mundial, descobriu onde, na capital moçambicana, Louis Trichardt havia sido sepultado com a sua mulher quando morreram ali em finais de 1838.

Mais tarde, com o sul-africano Dr. Colin Coetzee, descobriu também o local exacto onde, na Baía, os holandeses haviam edificado em 1720 uma fortaleza, pretendendo dessa forma tomar o comércio e disputar a sua posse com a coroa portuguesa.

Em 1964, Alfredo Pereira de Lima publicou a obra A História de Louis Trichardt (editado pela Minerva Central, com 137 páginas, esgotadérrimo).

O Jardim Memorial de Louis Trichardt, onde se encontram os restos mortais do pioneiro boer e de sua mulher.

A fachada principal do monumento.

A estátua à esquerda da entrada de do Dr. William Punt, que em 1964 era o presidente da Sociedade Louis Trichardt, sedeada em Pretória.

É nesta década que se decidiu edificar no local da sepultura de Trichardt um monumento memorial, que foi inaugurado às 14 horas do dia 12 de Outobro de 1968, pelo, do lado sul-africano, o então ministro da Educação Nacional da República da África do Sul, Jan de Klerk.

Estojo para os medalhões comemorativos da inauguração do monumento, 1968.

Um dos medalhões comemorativos.

Outro dos medalhões comemorativos.

Pelos seus esforços, Alfredo Pereira de Lima foi tornado membro da Sociedade Louis Trichardt, uma pequena organização sedeada em Pretória.

Ou seja, Louis Trichardt, uma das figuras mais “sagradas” da história e cultura boer, hoje um dos componentes do “arco-íris” sul-africano, está sepultado em plena baixa de Maputo.

De salientar que do esforço generalizado de retirada de monumentos por todo o país na altura da Independência de Moçambique, em Maputo só dois nunca foram tocados: o Monumento aos que morreram na 1ª Guerra Mundial em frente à estação dos Caminhos de Ferro, e o Jardim Memorial de Louis Trichardt.

Que por puro acaso visitei em Dezembro de 1984, altura em que o país estava já em plena guerra civil, Maputo deserta e vivendo em quieto e receoso desespero os dois últimos anos sob a tutela de Samora Machel. Para minha surpresa, lá encontrei o guarda-recepcionista, um senhor com alguma idade, impecavelmente vestido numa já algo velha farda, sorridente, explicando-me os detalhes do que lá está e oferecendo-me ao fim a assinar o livro de visitantes, o que fiz. Acho que pela tão calorosa recepção ofereci-lhe cinco dólares americanos, o que transformou a minha visita em dia de festa para ele, pois naquela altura cinco dólares em Maputo era uma pequena fortuna. Ainda bem, pensei.

Mas na altura não me apercebera de que aquele local repousavam os restos mortais do mítico líder boer. De facto, nunca soube desta história na sua totalidade até há menos de dois anos, por uma troca de mensagens com a filha de Alfredo Pereira de Lima, que me concedeu o privilégio de me providenciar dados e fotografias sobre o seu pai, que eu nunca conseguira encontrar, e que podem ser vistos premindo AQUI.

Esta história é não só interessante e curiosa: ela faz parte também da história de Maputo, de Moçambique e da África do Sul.

Tanto, entretanto, aconteceu desde esse dia em 1838 quando Trichardt faleceu junto à Baía. Depois de mais que 130 anos, Moçambique tornou-se numa nação independente. Na África do Sul terminou o apartheid e instituiu-se um regime democrático.

Uma visita ao Jardim em Memória de Louis Trichardt ajuda a lembrar como foi e como tudo mudou.

E deveria fazer parte obrigatória de qualquer roteiro histórico e cultural da Cidade de Maputo.

1 Comentário »

  1. Sempre que vou a Terra para por aqui uma vez ou duas.

    Comentar por Miguel Oliveira — 01/06/2016 @ 17:58


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